Quem apenas acompanhar a vida nacional através da televisão, da rádio e, inclusive, dos jornais ficará, por certo, com uma visão catastrófica do que acontece no país, mas, por outro lado, pouco fica a saber dos reais problemas que afetam e preocupam os cidadãos portugueses.
Parece haver, na realidade, uma acentuada desfocagem na forma como os problemas verdadeiros dos cidadãos são noticiados e, pior ainda, comentados.
Com efeito, à margem dos folhetins relatando as peripécias de alguns responsáveis pela governação e administração do Estado – necessitando, é certo, de conhecimento público –, existe todo um número significativo de problemas vitais, que afetam, todos os dias, a vida da maioria dos portugueses, independentemente das suas filiações, simpatias ideológicas e credos religiosos.
Sobre eles – e mais concretamente sobre as diferentes propostas e soluções políticas que existem para os resolver -, pouco os portugueses são informados.
Mais do que gastar dias inteiros repisando a cada hora as notícias sobre os mesmos folhetins, seria, porventura, mais importante divulgar e analisar nos media as dificuldades reais da vida corrente dos cidadãos, a partir de posições e pontos de vista diferentes.
Tal clarificação de propósitos e de propostas políticas – feita numa linguagem entendível e relegando para segundo plano o «economês», que a tudo responde hoje da mesma maneira, nada respondendo na verdade – poderia, talvez, unir mais a sociedade na busca e afirmação de um caminho partilhável por uma larga maioria.
É, com efeito, preciso afastar o «economês», não por as condicionantes económicas serem irrelevantes, que o não são, mas por, precisamente, as respostas políticas que urgem deverem ser expressas noutra língua: num idioma que responda, com efetividade, aos limites que aquelas condicionantes parecem sempre querer impor.
Tomemos, por exemplo, os problemas do trabalho.
Considerar, desde logo, que se trata, tão somente, de uma relação privada e íntima, entre empregador e empregado, é não compreender e não aceitar a dimensão profundamente humana e social que eles revestem.
A discussão do trabalho e a da sua assunção como uma questão civilizacional é indissociável da problemática do que, em muitos planos, é, ou pode ser, a dignidade de vida dos homens.
A questão do trabalho e a da sua crescente desumanização, poderia, por isso – como tema transversal que é – congregar o interesse e a contribuição de várias correntes de pensamento político, social e religioso.
Desde logo, a contribuição do pensamento sindical e a posição dos interesses patronais.
Depois, para um debate mais perfeito, não menos importante é, todavia, a perspetiva das igrejas, das associações de pais, dos urbanistas, dos responsáveis pelos transportes públicos, dos que têm de gerir a saúde pública, dos que se dedicam ao ensino, dos que, na justiça, têm de resolver a violência doméstica.
O horário do trabalho, por exemplo – influenciando, está claro, a função económica – condiciona, também, muitos outros problemas da sociedade e das famílias e que, só aparentemente, nada têm a ver com ele.
Desde logo, determina o tempo de funcionamento dos estabelecimentos escolares: muitos deles aparentam ser hoje, verdadeiramente, parques de estacionamento de crianças onde estas aguardam enquanto os pais trabalham ou se deslocam da sua sede laboral para o sítio onde habitam.
Será essa a vocação da escola?
O horário do trabalho contende, ainda, igualmente, com a sobrelotação dos transportes públicos e das vias rodoviárias, o que implica, de alguma maneira, também, com o problema da poluição atmosférica.
Quem trabalha, para além do tempo que acordou vender ao empregador, tem ainda de se deslocar, muitas vezes para longe, pois o salário auferido, mesmo sem ser o mínimo, não dá para viver perto do local do trabalho.
O horário do trabalho dificulta, ou impede mesmo, pois, uma maior dedicação dos pais aos filhos e destes, quando mais velhos, aos pais.
E, aqui, contende, também, com as necessidades e gastos da segurança social: lembremos o problema da carência e condições dos lares e das cresces.
Ele contende, além disso, com o ritmo de vida e unidade da família e com a sua preservação e desenvolvimento: em demasiadas situações, a família não consegue ter, com regularidade, a alegria de estar reunida.
Ora, esta é, precisamente, uma questão que muitos crentes – mas não só – consideram, e bem, como fundamental ao equilíbrio pessoal e social do ser humano.
Pensar ativa, articulada e coerentemente estes problemas é, pois, necessário.
Vivo hoje, provisoriamente, num país com um governo conservador-liberal e estou, talvez, em boa posição para comparar, a este propósito, o que nele e em Portugal sucede em tais domínios.
No país onde resido, os horários de trabalho e as suas regras raramente são desrespeitados, como acontece, frequentemente, no nosso país.
Os próprios empregadores estão conscientes da importância social desse rigor.
Parece, até, mal aos dirigentes que os seus trabalhadores tenham de exceder o tempo de trabalho normal.
Por volta das quatro e meia da tarde, terminam muitas empresas e repartições públicas o dia de trabalho e, por isso, é possível e agradável ver, desde as cinco horas, bandos de pais e mães – faça chuva, faça sol – a brincarem conjuntamente com os filhos nos parques infantis.
A taxa de natalidade neste país é, assim, das maiores da Europa. Em média, inferior, também, a idade dos seus cidadãos.
Como as lojas fecham às cinco da tarde, quinze minutos antes deixam de poder entrar mais clientes, para que os empregados saiam exatamente a horas, depois de terem arrumado os estabelecimentos.
As faltas curtas por doença são justificadas somente através de compromisso de honra dos trabalhadores, sendo somente necessária a intervenção médica se elas se prolongarem por algum tempo ou se tornarem demasiado frequentes.
Os salários são suficientes – mesmo o salário mínimo, que, aliás, poucos auferem – para que, quem trabalha, possa arrendar uma casa decente e suficientemente aquecida e não ter de prescindir de outras necessidades elementares a uma vida digna.
A diferença é, nestes aspetos, enorme relativamente ao que se passa no nosso país.
Algumas destas questões e as diferenças entre a distinta cultura laboral dos nossos países, pouco têm a ver com a legislação: sobrelevam, entre nós, sobretudo, de uma, já antiga, cultura prepotente e desrespeitosa da pessoa dos outros.
Todavia, tal cultura empedernida de desrespeito por quem trabalha – e pela sua família – pode ser corrigida se houver vontade política.
E isso não desequilibra as contas públicas.
Assim como, quando a ASAE nasceu, a sua ação intensiva e extensiva mudou, rápida e eficientemente, o panorama da higiene nos estabelecimentos portugueses dedicados ao comércio de alimentos, não é impossível, hoje, no limite, intensificar a fiscalização e a punição dos abusadores na área laboral.
Tudo depende, pois, do foco político, ou da falta dele.
Numa perspetiva mais social e cultural, o problema do horário e das condições laborais poderia, sem dúvida, constituir, por isso, uma área de eleição para iniciar um diálogo entre setores da sociedade influenciados por diferentes inspirações ideológicas e religiosas, mas todas com preocupações humanistas.
Basta ler o que se diz, a este último propósito, nas encíclicas deste e do Papa recentemente falecido, para percebermos a possível conjunção de ideias com outros setores da sociedade, que poderiam e deveriam dar origem a uma unidade de ações.
A questão do trabalho e a da dignidade de vida de quem o faz não dizem, assim e apenas, respeito aos setores que estão representados no Conselho Económico e Social: há, nela, um muito mais vasto número de interessados.
A crispação, hoje, visivelmente existente na nossa sociedade – apesar de a economia ir dando melhores provas do que se previa – pode, ainda assim, ser superada se todos os que estão empenhados num futuro mais justo para Portugal começarem, de novo, a participar, de viva voz, na discussão da coisa pública.
Aí, seria bom que os media – se não estivessem interessados apenas nos folhetins escandalosos – pudessem ajudar a convocar, ampliar e institucionalizar tal debate.
Substituir, nas relações laborais, uma cultura de prepotência e subserviência, de medo e aceitação de todas as humilhações e de desrespeito pelas nomas legais que ordenam o interesse público em várias áreas da sociedade é fundamental e deve, pois, agregar os portugueses, independentemente das opções filosóficas, religiosas, políticas e partidárias que assumam: é uma questão de pura humanidade.
Há, por enquanto, no nosso país, e felizmente, condições políticas, económicas e sociais para que esse debate possa ter lugar sem violência.
Porém, se tal demorar a acontecer, então os lobos uivarão de novo às nossas portas.