Aos olhos da maioria dos portugueses, o país parece viver, e de certa forma talvez viva mesmo, uma crise sem precedentes.
Tal crise, segundo aqueles que a alimentam e dela se alimentam, parece, contudo, nada ter a ver com a pouca qualidade de vida da generalidade dos cidadãos, antes se centrando numa folhetinesca coleção de estórias, bizarras, mas moralmente pouco edificantes, de alguns responsáveis pela governação local e central do país.
O pior é que, como dizia o poeta Aleixo, «para a mentira ser segura e atingir profundidade, tem de trazer à mistura qualquer coisa de verdade».
A abordagem que, porém, é feita de tais estórias pelos media, reduzindo-as, do ponto de vista cívico, quase exclusivamente, à dimensão jurídico-criminal da sua notícia, não contempla, muito oportunamente, a apreciação e o enquadramento político-social e económico, que lhes está na génese.
Se o exame de tais notícias aí chegasse, evidenciar-se-ia a insistente semelhança das estórias de uns e de outros, inclusive das que já tiveram como protagonistas os que, furibundos, rasgam agora as vestes de tão indignados que estão com as estórias dos outros.
Modelada por um farisaico moralismo, a abordagem político-policial de tais estórias, parecendo querer ser abstrata e objetiva, é, afinal, politicamente dirigida a um único alvo que, por qualquer motivo, se considera ser necessário abater para que nada mude de verdade.
Usando uma linguagem belicosa, muito em voga na atual guerra europeia – cuja crescente extensão e perigosidade teimamos em não ver -, diríamos que o enfoque usado se assemelha ao de um míssil de alta precisão.
Em alguns casos, acompanhado por uma miríade de outros foguetes capazes de despistar as defesas inimigas, o que o míssil principal pretende é destruir um único objetivo: no caso, o valor real das palavras que dão significado à nossa democracia.
A dificuldade do seu sucesso cabal reside na circunstância de o alvo primário se encontrar, frequentemente, rodeado de muitíssimos outros, que, sendo – ou tendo sido, desde sempre – mais ou menos coniventes com o agressor, podem, ainda assim, ser atingidos pelos estilhaços da deflagração principal, ou seja: pelo fogo amigo.
Como, no entanto, o atacante não descura atingi-los numa segunda vaga da sua agressão, de pouco lhe importa que alguns possam sair, desde logo, feridos ou chamuscados com a primeira investida.
De alguma maneira, isso até contribui positivamente para justificar a alegada isenção do tiro que ensaiaram.
Por tal motivo, o referido bombardeamento – mesmo visando um alvo determinado – vai despedaçando, também, todos aqueles que, por razões várias, se deixaram ficar na proximidade do objetivo em foco no ataque inicial.
Claro está que, tratando-se, neste caso, tão somente, de um bombardeamento verbal – mas, nem por isso, menos demolidor – os efeitos pretendidos consistem, sobretudo, em destruir as palavras que dão legitimidade ao seu discurso político.
Tudo se resume, afinal, em procurar desmoronar, definitivamente, o valor intrínseco de um discurso que, na aparência, se encontra já depreciado pelo exemplo – ou falta dele – de quem, inconsequente, o repete, mesmo sem nele acreditar já.
Juntamente com o orador já desacreditado, o que importa, assim, ao lançador do míssil de alta precisão é derrubar e esvaziar, também, através da explosão que aquele provocar, o que resta do valor das palavras que, mesmo que hipocritamente, o palestrante a abater ainda insiste em usar.
Porém, mesmo que feridas, elas não morreram e, encarecidas por quem acredite no que realmente valem, poderão voltar a brilhar, pois o seu valor está na sua própria verdade e não, necessariamente, em quem delas sempre abusou para enganar os tolos.
Daí, o ambicionado e pretendido efeito demolidor das ogivas que, repetidamente, atingem tais palavras que ainda estruturam e dão vida à nossa Constituição.
Tais palavras com que, na nossa democracia, se procurou dar coerência diária à vida de muitos cidadãos e, bem assim, iluminar o seu futuro e o dos seus filhos, são – goste-se, ou não -, ainda hoje, as pedras basilares e mobilizadoras da nossa democracia.
Mesmo que seriamente lesionadas, elas mantêm-se, assim, perigosas para os que nelas não acreditam e, também, para os que, com falsidade, as prostituem.
Por tal razão, é o valor emblemático, mas, afinal, empolgante, dessas palavras que – tanto, ou mais, do que o orador leviano que as usa – está na mira dos que disparam os mísseis.
Mesmo que já esfarrapadas, elas ainda incomodam muitos: os que as renegam e os que, sem fé, insistem em usá-las.
Em outras vozes e noutros palcos – que não os dos tagarelas que delas, insensatamente, enchem a boca – tais palavras podem, de novo, ser usadas para voltar a despertar o princípio de esperança que move, e sempre moveu, a maioria das mulheres e dos homens que, connosco, vivem os difíceis tempos presentes.
Aí, para muitos, precisamente, o seu perigo.
Dizia já o poeta Aleixo: «vós que lá do vosso império prometeis um mundo novo, calai-vos que pode o povo querer um mundo novo a sério».
Reabilitar, pelo exemplo e a ação concreta – e não só com recurso a truques estilísticos –, a eloquente importância das ideias que tais palavras expressam é, portanto, a única maneira de evitar o efeito desmoralizador dos bombardeamentos constantes que elas sofrem.
Hoje, o único modo de fazer frente ao foguetório intimidante com que, nos mais variados fóruns se bombardeiam tais palavras, é devolver-lhes o valor facial que já tiveram, quando eram ditas e correspondiam, de facto, ao exemplo de quem as reinventou, as inscreveu na Constituição e delas, verdadeiramente, gostava.
É por tal razão que importa voltar a dar significado palpável e visível a muitas dessas palavras, pois foram elas que ofereceram – e ainda oferecem – um conteúdo mais humano à democracia, tal como a nossa Constituição a entende.
Com rara precisão e simplicidade, disse Sérgio Godinho, no começo da democracia portuguesa: «só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação».
Assim era, e hoje também.
Se nos empenharmos todos, de novo, na generosa, jovial e efetiva concretização de tais objetivos democráticos, os que, cinicamente – na rádio, nos jornais digitais, nas TV, nos comícios ameaçadores e nas convenções mais estridentes – se conjuram, hoje, afanosamente, para esvaziar do seu sentido humanista a palavra democracia, ficarão, uma vez mais, a sonhar com fantasmas e a falar sozinhos.