Ameaças a Marcelo e um chantagista inimputável

Ameaças a Marcelo e um chantagista inimputável


Em outubro do ano passado, Marcelo foi alvo de uma tentativa de chantagem. No interior do envelope, para lá da conta bancária para onde deveria ser enviado o dinheiro, estava uma bala. O homem foi agora preso.


por Felícia Cabrita e Joana Faustino

Um frio ríspido agarrou-se aos ossos dos portugueses, moralmente enregelados com as notícias diárias. «Quem irá cair hoje?», pergunta-se nas ruas e cafés. O Ministério Público apertou a malha. O Governo rui lentamente. Uma velha suspeita de corrupção atinge alguns dos seus membros.

De repente, porém, o alvo das autoridades muda. Na terça-feira, 24 de janeiro, a CNN deixa o país de brandos costumes alarmado: fora detido o homem que ameaçara de morte o Presidente da República. O editor da sociedade do canal televisivo, de semblante sério, analisa o caso diagnosticando que era uma «situação sem precedentes em Portugal». O suspeito teria antecedentes de criminalidade perigosa.

Horas antes, demasiado cedo para Marco Aragão, que dormia sob a influência de ansiolíticos, a Polícia Judiciária batera-lhe à porta: procuravam provas. Com essa não contava ele. Nem podia. Vivia noutra realidade, ou entre duas realidades. Tudo dependia se estava ou não sob medicação.

A filha de Marco, de nove anos, não percebeu o que se passava, apenas notou a alteração da rotina familiar: gente a mais em casa, desarrumação. A mulher, médica, tinha razões para suspeitar. Se não conhecesse o marido e os abismos que nele conviviam, ter-se-ia assustado. Rezava o mandado judicial de busca que Marco enviara uma missiva a Marcelo Rebelo de Sousa, em que, com artes adivinhatórias, o ameaçava abater «com um tiro na cabeça e outro no peito», caso este não lhe pagasse um milhão de euros.

E, para que o Presidente não tivesse ideias, tentava provar o quão perigoso ele era, avisando-o que não alertasse «os cães da PJ, nem da UNCT (Unidade Nacional de Combate ao Terrorismo), pois seriam corridos a tiro e limpos como animais e bestas que são».

 O telefone e o IBAN que o marido escrevera na carta ameaçadora deram uma certeza à médica: o plano de Marco não passava de mais uma das partidas da sua doença. O contacto telefónico e o número internacional da conta para a qual era suposto o Presidente proceder ao pagamento da extorsão pertenciam, afinal, a um primo com quem o marido andava desavindo.

 

Antecedentes criminais

Não fora a primeira vez que Marco se fizera passar por outro e ameaçara altas figuras do Estado. Em 2019, o homem – licenciado em Direito mas com um percurso profissional errante – estava como inspetor-estagiário do núcleo de fiscalização da Segurança Social quando lhe surgiu a ideia. Como confessaria em tribunal, «a euforia tomou conta dele» quando percebeu que tinha acesso a um banco de informação privilegiada sobre pessoas que admirava profissionalmente.

 Como sempre desejara ser espião, inverteu o jogo. Os seus alvos principais são elementos do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) e do Serviço de Informações e Segurança (SIS), a procuradora-geral da República e o homem que acabaria por o prender por duas vezes, Luís Neves, diretor nacional da PJ.

Inspirado no apelido indiano de uma colega da Segurança Social, criou um falso endereço eletrónico e espalhou ameaças por todas aquelas entidades, dizendo que enviaria as suas moradas, salários e identidades a «todos os espiões do mundo e jornais internacionais», se cada um deles não lhe pagasse meio milhão de euros em local a combinar na zona de Setúbal.

 No Tribunal Central Criminal de Lisboa, onde Marco foi julgado em 2020, tendo confessado todos os crimes de que vinha acusado, acabou por alegar que as intimidações não eram «sérias e que não pretendia receber qualquer quantia ou benefício», apenas se inspirara nalguns filmes de espionagem.

Da mesma opinião não era Luís Neves, que sustentou perante os juízes que o conteúdo dos e-mails enviados pelo arguido se baseava em informação sensível e bastante sigilosa, revelando o seu espanto sobretudo quanto à matéria relacionada com os colegas dos Serviços de Informações que, julgava ele, estaria bem guardada e protegida e jamais poderia ser devassada daquela maneira.

 

Internado em Caxias

Fora por isso que, ao tomar conhecimento do caso, o diretor da PJ apressara os seus homens e em apenas 24 horas Marco fora identificado e detido.

Internado no Hospital Prisional de Caxias a aguardar julgamento, Marco fora acompanhado por um psiquiatra e retomara a medicação para a psicose crónica incurável que tinha interrompido. Até aí, e desde que a doença dera os primeiros sintomas, já fora condenado algumas vezes, mas apenas a penas pecuniárias. Os crimes eram diversificados: detenção de arma proibida, incêndio, subtração de documento.

Tudo isto levara o MP a pedir a sua condenação, mas, tendo em conta o historial clínico e a confissão dos crimes, acabara por requerer uma medida de segurança, pedindo que os juízes o declarassem inimputável. A proposta fora aceite. E os juízes Rosa Brandão, Nuno Dias Costa e Filipa Gonçalves consideraram mesmo Marco inimputável, aplicando-lhe, como a lei prevê, uma medida de internamento – suspensa por dez anos, na condição de o arguido se manter acompanhado por um médico psiquiatra e a tomar medicação.

Fizeram-no com base em pareceres clínicos, que foram unânimes: Marco sofria de perturbação esquizoafetiva, uma psicose de natureza funcional «de evolução crónica, não curável, mas tratável com medicação antipsicótica adequada».

 De acordo com os especialistas que fizeram a avaliação de risco, o homem poderia ser perigoso, mas só em caso de falta de acompanhamento psiquiátrico e de tratamento.

 

Interrupção do tratamento e nova prisão

Mas os fármacos deixam Marco torpe, cai no desemprego, a sua libido diminui, acabando por pôr os medicamentos de lado.

A 26 de outubro do ano passado, Marcelo Rebelo de Sousa recebe uma carta com uma exigência: ou é depositado um milhão de euros na sua conta, ou o Presidente morre. Para adensar o clima, dentro do envelope segue uma bala.

 Só três meses depois, a PJ, que já  o detivera no caso dos e-mails, lhe baterá novamente à porta. Na quarta-feira, o juiz de instrução criminal deu a Marco a medida mais gravosa: prisão preventiva, por ser suspeito dos crimes de coação agravada, extorsão na forma tentada e detenção de arma proibida.

Marco irá, contudo, ficar a aguardar julgamento na ala psiquiátrica do Hospital Prisional de Caxias, onde irá realizar exames para aferir, mais uma vez, a sua sanidade mental. Nuno Rodrigues Nunes, seu advogado, considera a medida adequada, pois, para ele, isto não é «um caso de polícia mas sim de saúde mental, que tem de ser tratado».

 Da mesma opinião é a sua psiquiatra, a qual revela que, há poucos meses, Marco fez uma tentativa de suicídio, sublinhando que os recentes acontecimentos podem aumentar as probabilidades de o repetir. Assim, aconselhou o internamento na ala psiquiátrica do hospital prisional, ao invés de uma detenção em espaço prisional ‘comum’.

Apesar das considerações de perigosidade feitas pela PJ, Marcelo Rebelo de Sousa não se mostra particularmente preocupado e diz mesmo que, apesar de respeitar o trabalho das autoridades, «desvaloriza a ameaça», que considerou ‘sui generis’,  uma vez que o suspeito deu elementos ‘específicos’, como o número de telefone e o NIB, que afinal eram do primo.