O poder dos media, a sobrevivência da política e o papel da justiça


O que já parece mais estranho é o novo estilo de noticiário, gotejante em relação a casos sob investigação, que ora acontece.


A questão dos efeitos políticos e sociais das fake news, que circulam nas redes digitais, tem feito correr muita tinta.

Menos preocupações tem merecido, entretanto, o tratamento jornalístico dado a notícias – mais ou menos verdadeiras –, que resultam de fugas provindas de alegadas fontes judiciárias, sobre investigações criminais e processos de vária natureza que correm nos tribunais.  

A existência de investigações criminais baseadas em denúncias, muitas delas plausíveis é, num Estado de Direito, normal e até exigível.

A sua existência e profundidade são mesmo fundamentais para melhorar o funcionamento das instituições e, quando necessário, para punir os infratores que, de uma maneira ou de outra, se aproveitam dos cargos e bens públicos.

Os juristas e os profissionais do foro sabem, porém, que tais investigações não significam, necessariamente, que os investigados sejam autores e culpados das ações que lhes são imputadas nas denúncias.

Frequentemente, e por muitos e distintos motivos, muitas dessas investigações acabam arquivadas, outras morrem na instrução, outras ainda, quando as acusações vão a julgamento, terminam em absolvições parciais ou totais.

Em Portugal – com razão, ou sem ela – é esse, ainda, o destino de um número considerável das mais relevantes investigações.

Nada disto é anormal, ou exclusivo do nosso país, ou novo para nós.

Que os cidadãos possam ter uma notícia fidedigna de tais casos é bastante salutar, mesmo que raramente aconteça.

O que já parece mais estranho é o novo estilo de noticiário, gotejante em relação a casos sob investigação, que ora acontece, à maneira da tortura de Tântalo.

Melhor dizendo: refiro-me ao noticiário, seletivo e constante, de alguns – e apenas alguns – casos em investigação.

 

Deste modo, assim como se apregoa, em alguns canais de televisão, o relato da guerra da Ucrânia em direto e ao minuto, podia passar a anunciar-se, também, que, com igual grau de objetividade e entusiasmo, se optou, agora, pela narrativa ao vivo e em tempo real, do desabamento forçado da credibilidade das instituições democráticas do país.

É que, se a existência de denúncias e investigações não é, como dissemos, novidade, já a oportunidade, no ritmo e no muito orientado sentido do seu noticiário, constitui, entre nós, um inovador e também ele aditivo estilo de informação.

A ideia, parece ser, como no noticiário da atual guerra, a de transmitir, em inflamados e sucessivos folhetins, uma certa leitura da ação política que leve o público a assimilar, de maneira predeterminada, as causas do fenómeno criminal associado ao funcionamento das instituições do estado central e local.

O que é mais grave é que, ao optarem por este novo, muito vivo e direcionado estilo de informação, os media tradicionais inculcam, simultaneamente, a ideia – falsa, quero, ainda, acreditar – de que também as autoridades judiciais e judiciárias participam, deliberadamente, na seleção das notícias que os media entendem, em cada momento, ser útil veicular para a opinião pública.

Ora, a deformada perceção pública sobre o papel do poder judicial e das autoridades judiciárias que daí resulta torna ainda mais perniciosa e degradada a imagem do Estado de Direito e, portanto, da democracia.

O que, no princípio, começa, assim, por ser apenas o noticiário impactante de um «facto jurídico/judicial», transforma-se, de imediato, em virtude da orientada seleção e concatenação noticiosa realizada pelos media, num encadeado e poderoso «facto político» capaz de alterar o juízo que a opinião pública tinha da governação e da própria democracia.

Há, todavia, uma diferença significativa entre ambos conceitos.

O facto jurídico/judicial tem de ser provado em tribunal e, enquanto não o for, prevalece a presunção de inocência de quem alegadamente o praticou, e, por isso, tal facto, em rigor, ainda não existe e não serve, portanto, aos mais ambiciosos propósitos de quem o divulga.

Ao contrário, o facto político existe por si, não precisa de prova e produz, de imediato, todos os seus resultados, simplesmente por existir.

A notícia, lida à luz destas cruzadas interpretações da mesma realidade, ganha, todavia, um diferente e eficaz efeito: ela passa a compor o cenário que nos é dado percecionar como constituindo toda a realidade da política e dos políticos. 

Se tal transformação da notícia em «facto político» é – como disse –  relativamente nova entre nós, não o é, contudo, em outras latitudes e cenários políticos: lembremo-nos do que, há não muitos anos, sucedeu no Brasil e como isso conduziu, então, à eleição de Bolsonaro.

Faz mais tempo – recordemos – o mesmo ocorreu em Itália.

A consciência – verdadeira ou falsa – de que, mais do que uma mudança política, é necessária uma mudança do regime, começa, então, a ganhar forma, mesmo quando não querida, necessariamente, por quem antes alimentou o guião noticioso que lhe deu origem.

Mais, a almejada vontade de tal mudança radical acaba, demasiadas vezes, por não favorecer quem dela era suposto beneficiar, antes auxiliando apenas aqueles que, à margem e contra a democracia, se situam.

Os interesses que moveram tal mudança, postados já, assim, acima daqueles que, numa democracia, devem assegurar a governação do país de pouca ou de nenhuma transparência necessitam.

Aí, e ainda mais opaca do que antes, nasce uma governação que já pouco tem a ver com a vontade popular, nem, no essencial, se dirige à concretização do bem comum.

E, quando me refiro aos perigos para democracia resultantes da mutação no poder político fabricada deste modo pelos media, falo, também, nos riscos que, para estes e para a própria liberdade de imprensa, tal alteração comporta.

É que, se o poder novo, que substituiu o que foi derrubado pelos media, lhes pode ter ficado temporariamente agradecido, cedo se apercebe, ele também, de que aqueles – agora todo-poderosos –  são imprevisíveis e podem, inclusive, constituir uma ameaça contra si, devendo, por isso, ser domesticados.

Domesticar os media será, assim, uma tentação: é domesticar a própria democracia e avançar para uma sociedade ainda mais cerceada nos seus direitos.

Deixar, assim, aos media a arrogância e o gozo de poderem derrubar e escolher a governação de um país, é muito arriscado.

Pertencendo a quase totalidade deles a quem pertencem, tal possibilidade é como entregar o ouro a quem, estando por trás de muitos dos casos que envergonham a democracia, tiveram, ainda, a possibilidade e ousadia de selecionar as notícias que mais lhe convinha publicitar para mudar o rumo do poder.

Nesta intrincada perversão democrática terão, seguramente, a maior responsabilidade os que, irresponsável ou militantemente, contribuíram, com a sua falta de princípios, o seu gesto e, sobretudo, com a sua palavra leviana, para minar e desacreditar uma democracia que tanto tempo e de forma tão dolorosa custou a alcançar.  

O poder dos media, a sobrevivência da política e o papel da justiça


O que já parece mais estranho é o novo estilo de noticiário, gotejante em relação a casos sob investigação, que ora acontece.


A questão dos efeitos políticos e sociais das fake news, que circulam nas redes digitais, tem feito correr muita tinta.

Menos preocupações tem merecido, entretanto, o tratamento jornalístico dado a notícias – mais ou menos verdadeiras –, que resultam de fugas provindas de alegadas fontes judiciárias, sobre investigações criminais e processos de vária natureza que correm nos tribunais.  

A existência de investigações criminais baseadas em denúncias, muitas delas plausíveis é, num Estado de Direito, normal e até exigível.

A sua existência e profundidade são mesmo fundamentais para melhorar o funcionamento das instituições e, quando necessário, para punir os infratores que, de uma maneira ou de outra, se aproveitam dos cargos e bens públicos.

Os juristas e os profissionais do foro sabem, porém, que tais investigações não significam, necessariamente, que os investigados sejam autores e culpados das ações que lhes são imputadas nas denúncias.

Frequentemente, e por muitos e distintos motivos, muitas dessas investigações acabam arquivadas, outras morrem na instrução, outras ainda, quando as acusações vão a julgamento, terminam em absolvições parciais ou totais.

Em Portugal – com razão, ou sem ela – é esse, ainda, o destino de um número considerável das mais relevantes investigações.

Nada disto é anormal, ou exclusivo do nosso país, ou novo para nós.

Que os cidadãos possam ter uma notícia fidedigna de tais casos é bastante salutar, mesmo que raramente aconteça.

O que já parece mais estranho é o novo estilo de noticiário, gotejante em relação a casos sob investigação, que ora acontece, à maneira da tortura de Tântalo.

Melhor dizendo: refiro-me ao noticiário, seletivo e constante, de alguns – e apenas alguns – casos em investigação.

 

Deste modo, assim como se apregoa, em alguns canais de televisão, o relato da guerra da Ucrânia em direto e ao minuto, podia passar a anunciar-se, também, que, com igual grau de objetividade e entusiasmo, se optou, agora, pela narrativa ao vivo e em tempo real, do desabamento forçado da credibilidade das instituições democráticas do país.

É que, se a existência de denúncias e investigações não é, como dissemos, novidade, já a oportunidade, no ritmo e no muito orientado sentido do seu noticiário, constitui, entre nós, um inovador e também ele aditivo estilo de informação.

A ideia, parece ser, como no noticiário da atual guerra, a de transmitir, em inflamados e sucessivos folhetins, uma certa leitura da ação política que leve o público a assimilar, de maneira predeterminada, as causas do fenómeno criminal associado ao funcionamento das instituições do estado central e local.

O que é mais grave é que, ao optarem por este novo, muito vivo e direcionado estilo de informação, os media tradicionais inculcam, simultaneamente, a ideia – falsa, quero, ainda, acreditar – de que também as autoridades judiciais e judiciárias participam, deliberadamente, na seleção das notícias que os media entendem, em cada momento, ser útil veicular para a opinião pública.

Ora, a deformada perceção pública sobre o papel do poder judicial e das autoridades judiciárias que daí resulta torna ainda mais perniciosa e degradada a imagem do Estado de Direito e, portanto, da democracia.

O que, no princípio, começa, assim, por ser apenas o noticiário impactante de um «facto jurídico/judicial», transforma-se, de imediato, em virtude da orientada seleção e concatenação noticiosa realizada pelos media, num encadeado e poderoso «facto político» capaz de alterar o juízo que a opinião pública tinha da governação e da própria democracia.

Há, todavia, uma diferença significativa entre ambos conceitos.

O facto jurídico/judicial tem de ser provado em tribunal e, enquanto não o for, prevalece a presunção de inocência de quem alegadamente o praticou, e, por isso, tal facto, em rigor, ainda não existe e não serve, portanto, aos mais ambiciosos propósitos de quem o divulga.

Ao contrário, o facto político existe por si, não precisa de prova e produz, de imediato, todos os seus resultados, simplesmente por existir.

A notícia, lida à luz destas cruzadas interpretações da mesma realidade, ganha, todavia, um diferente e eficaz efeito: ela passa a compor o cenário que nos é dado percecionar como constituindo toda a realidade da política e dos políticos. 

Se tal transformação da notícia em «facto político» é – como disse –  relativamente nova entre nós, não o é, contudo, em outras latitudes e cenários políticos: lembremo-nos do que, há não muitos anos, sucedeu no Brasil e como isso conduziu, então, à eleição de Bolsonaro.

Faz mais tempo – recordemos – o mesmo ocorreu em Itália.

A consciência – verdadeira ou falsa – de que, mais do que uma mudança política, é necessária uma mudança do regime, começa, então, a ganhar forma, mesmo quando não querida, necessariamente, por quem antes alimentou o guião noticioso que lhe deu origem.

Mais, a almejada vontade de tal mudança radical acaba, demasiadas vezes, por não favorecer quem dela era suposto beneficiar, antes auxiliando apenas aqueles que, à margem e contra a democracia, se situam.

Os interesses que moveram tal mudança, postados já, assim, acima daqueles que, numa democracia, devem assegurar a governação do país de pouca ou de nenhuma transparência necessitam.

Aí, e ainda mais opaca do que antes, nasce uma governação que já pouco tem a ver com a vontade popular, nem, no essencial, se dirige à concretização do bem comum.

E, quando me refiro aos perigos para democracia resultantes da mutação no poder político fabricada deste modo pelos media, falo, também, nos riscos que, para estes e para a própria liberdade de imprensa, tal alteração comporta.

É que, se o poder novo, que substituiu o que foi derrubado pelos media, lhes pode ter ficado temporariamente agradecido, cedo se apercebe, ele também, de que aqueles – agora todo-poderosos –  são imprevisíveis e podem, inclusive, constituir uma ameaça contra si, devendo, por isso, ser domesticados.

Domesticar os media será, assim, uma tentação: é domesticar a própria democracia e avançar para uma sociedade ainda mais cerceada nos seus direitos.

Deixar, assim, aos media a arrogância e o gozo de poderem derrubar e escolher a governação de um país, é muito arriscado.

Pertencendo a quase totalidade deles a quem pertencem, tal possibilidade é como entregar o ouro a quem, estando por trás de muitos dos casos que envergonham a democracia, tiveram, ainda, a possibilidade e ousadia de selecionar as notícias que mais lhe convinha publicitar para mudar o rumo do poder.

Nesta intrincada perversão democrática terão, seguramente, a maior responsabilidade os que, irresponsável ou militantemente, contribuíram, com a sua falta de princípios, o seu gesto e, sobretudo, com a sua palavra leviana, para minar e desacreditar uma democracia que tanto tempo e de forma tão dolorosa custou a alcançar.