Por Rita Nunes
É inegável que o coração, órgão responsável por bombear o sangue para todo o corpo, tem uma influência determinante na nossa saúde. A utilização de um estetoscópio parece-nos agora banal, mas a sua introdução há cerca de 200 anos veio mudar a forma como ainda hoje é feita a auscultação dos batimentos cardíacos, tornando-a muito mais prática e confiável. O desenvolvimento de técnicas que permitam auxiliar os clínicos na avaliação do coração tem tido por isso um enorme impacto, facilitando o diagnóstico e avaliação do tratamento de patologias cardíacas.
Desde então, tem havido inúmeros avanços tecnológicos que têm permitido melhorar a qualidade dos exames cardíacos. Exemplos disso são a introdução do eletrocardiograma (ECG), um exame conhecido por muitos de nós, que regista a atividade elétrica associada à contração cardíaca, ou a invenção de técnicas de imagiologia. Uma simples radiografia pode indicar, por exemplo, que o coração de um determinado indivíduo possuí uma dimensão fora do comum. Por seu turno, a ecocardiografia ou a Imagiologia por Ressonância Magnética (IRM) permitem avaliar a função cardíaca de forma não-invasiva, tornando possível visualizar o funcionamento do músculo cardíaco e das válvulas, que em condições normais impedem o retorno do sangue bombeado.
Estas inovações são incalculáveis quando sabemos que a doença cardíaca coronária é a principal causa de morte em todo o mundo. Esta doença ocorre quando há estreitamento dos vasos sanguíneos que irrigam o coração, devido à acumulação de placas de gordura, reduzindo o seu fluxo sanguíneo e comprometendo o funcionamento do músculo cardíaco, devido ao menor aporte de oxigénio e de nutrientes. Este tipo de eventos pode ameaçar a vida dos doentes, tornando-se por isso extremamente importante a deteção precoce da doença coronária. Presentemente, o método mais utilizado é a angiografia coronária, que consiste no registo de imagens durante a transmissão de raios-X. Este teste permite avaliar o fluxo sanguíneo através das artérias coronárias que fornecem sangue ao coração, mas apresenta a enorme desvantagem de ser invasivo, pois requer a inserção de um cateter, um tubo muito fino e flexível, numa artéria periférica. Dadas as suas características, este procedimento não é adequado para exames rotineiros de triagem pois, para além de caro, requer internamento hospitalar e a exposição do paciente a radiação-X.
Felizmente, já existe uma alternativa: a IRM cardíaca de perfusão. Este procedimento é seguro e não-invasivo, mas não está ainda suficientemente desenvolvido. Tipicamente, a aquisição de imagens por IRM é um processo lento comparativamente a outras técnicas de imagiologia, o que torna as imagens sensíveis a qualquer tipo de movimento, comprometendo a qualidade das imagens e a capacidade de realizar um diagnóstico. Para lidar com o movimento do coração, é possível sincronizar o exame com o ritmo cardíaco, através do registo de um ECG. Para evitar movimentos respiratórios é comum pedir aos doentes que sustenham a respiração, mas nem todos conseguem colaborar e a repetição de diversos momentos de apneia durante todo o exame tornam-no desconfortável. A IRM cardíaca de perfusão pressupõe que se consiga acompanhar a primeira passagem, através dos vasos sanguíneos, de um agente de contraste injetado perifericamente. O problema é que este é um processo muito rápido o que limita substancialmente a quantidade de dados de IRM passíveis de ser recolhidos. Tal tem afetado a qualidade das imagens obtidas e reduzido a cobertura alcançada, limitada a apenas algumas secções do coração, quando é desejável uma cobertura completa. A interpretação dos dados é ainda muito complexa, necessitando de pessoal altamente treinado, limitando para já a adoção desta técnica a centros muito especializados.
Um grupo de investigadores Ibéricos resolveu abraçar estes desafios. Graças a financiamento da Fundação La Caixa e da Fundação para a Ciência e Tecnologia, iniciou um projeto científico no início de 2023, que permitirá desenvolver novas ferramentas juntando os conhecimentos científicos e técnicos de investigadores portugueses e espanhóis. O desenvolvimento de novas estratégias para obtenção dos dados de IRM está a cargo dos investigadores do Instituto Superior Técnico, auxiliados pela Philips Healthcare. Os investigadores do Centro de Ciências do Mar, da Universidade do Algarve, que lidera o projeto, estão a combinar modelos matemáticos de fluxo sanguíneo cardíaco e de perfusão por IRM para permitir a reconstrução de mapas de perfusão sanguínea a partir de um conjunto reduzido de dados. O Laboratório de Processamento de Imagem, Universidade de Valladolid, vai contribuir com a sua experiência em métodos de correção de movimento, por forma a dispensar a realização de apneias, estando os testes e validação clínica sob a responsabilidade do Centro Nacional Cardiovascular Carlos III, em Madrid.
Os novos métodos irão permitir melhorar substancialmente a qualidade dos exames de IRM de perfusão cardíaca, tornando-os muito mais confortáveis para os doentes e mais fáceis de analisar e interpretar. Esperamos que os resultados deste projeto contribuam para melhorar o diagnóstico da doença cardíaca coronária, aumentando as taxas de sobrevida, qualidade de vida e segurança dos pacientes.
Professora no Instituto Superior Técnico
e investigadora no ISR-Lisboa