Devemos mesmo mudar o hino nacional?

Devemos mesmo mudar o hino nacional?


Por um mundo melhor, o músico Dino D’Santiago propõe mudar o Hino Nacional e lançou polémica. Se há quem fique do lado do músico, há quem ache má ideia. As opiniões de historiadores e especialistas dividem-se, mas a verdade é que este assunto já tinha visto a luz do dia há 25 anos e era defendido por…


A nossa geração, este nosso tempo, já é um tempo de termos um hino menos bélico, que incentive menos às guerras. Não gritemos mais ‘às armas, às armas’ e não marchemos mais ‘contra os canhões’. Os nossos filhos não precisam disso e a nova emancipação não pode ser territorial. Que seja mental, espiritual, com amor». O apelo foi lançado pelo artista Dino D’Santiago sugerindo assim que se mudasse o hino nacional. O desafio foi lançado mas não foi muito consensual na sociedade e as críticas ao cantor de 41 anos surgiram rapidamente. Assim como os apoios, diga-se.

Como em tudo, há quem goste e quem não goste, há quem entenda e quem não entenda. Por isso, a LUZ tentou perceber junto de historiadores e especialistas a sua opinião e se faz então sentido, ao fim de tantos anos, mudar o hino nacional de um país, no caso, o de Portugal.

«A letra – como em muitos outros hinos nacionais – é o produto de um tempo histórico», começa por dizer o economista António Bagão Félix. E acrescenta: «Se andarmos a mudar de letra, no futuro, ‘cada década, cada letra’. O que acho mal é muita gente – sobretudo nova – não saber cantar o hino», atira.

Quem também não se mostra de acordo com esta ideia à mudança de letra é o jornalista e historiador José Milhazes. E questiona: «Deixamos de dizer às armas? E em vez dos canhões voltar aos bretões? Acho que nós temos uma história que é a história que é. E em determinada altura passámos a ter um hino. Acho que não há razões para estar a mudar um hino que foi escrito numa determinada situação».

À LUZ, o historiador lembra que todos nós sabemos que a parte do ‘às armas, às armas’, «não significa para os portugueses o incitamento à guerra». E por isso defende não entender este posicionamento de mudança.

Começa então por lembrar o tempo em que viveu noutro país. «Vivi num país onde periodicamente mudavam a letra do hino. Primeiro era o Lenine, depois o Lenine e o Estaline, depois retiraram o Estaline e o Lenine continuou. Depois chegou o Putin, mudou a letra mas deixou a música. Moral da história: andamos numa dança em que a maioria dos russos não sabe a letra do hino nacional», alerta.

Na opinião de José Milhazes, para mudar o hino, então seria preciso mudar também outras coisas, dando como exemplo a bandeira. «A bandeira também tem símbolos de guerra, conquistas».

Para o historiador, não se trata de reescrever a História. «Os russos têm uma frase filosófica muito interessante. Dizem eles, deles próprios: o nosso futuro é sempre radioso, o nosso passado é improvável. Se há acontecimentos, ou documentos, ou factos, que virem qualquer acontecimento importante da nossa História, é normal que a revejamos. Agora esse não é o caso. É um hino que foi cantado há muitos anos e não estou a ver qual a necessidade de mudar. E vamos quê? Mudar só a letra e deixar a música? E em vez da armas o que é que lá vamos meter?», questiona defendendo que a História pode ser mudada mas, para que isso aconteça, é necessário que existam factos que o comprovem.

Este assunto é, na sua opinião, dar importância a problemas menores quando o mundo atravessa problemas maiores. «Temos uma guerra na Europa, temos problemas gravíssimos sociais, económicos, políticos. O nosso Governo deixa uma imagem absolutamente deplorável do país. E no lugar de resolver estes problemas, vamos agora estar a discutir se vamos mudar o hino». E volta a deixar questões: «E depois o que é que vamos fazer ao Camões? Vamos começar a emendar o Camões? As pessoas devem dedicar-se a coisas importantes».

Volta então a falar da letra do hino nacional dizendo que, «a palavra armas não incute militarismo nos portugueses. As pessoas cantam aquilo mas aquilo não faz lembrar militarismo».

Lembrando mudanças ao hino de outros países como Alemanha e França, José Milhazes lembra que «este hino nem sequer é do Estado Novo. Podíamos dizer ‘é fascista’ mas não é verdade. É da Primeira República. E as forças políticas depois do 25 de Abril consideram-se herdeiras da Primeira República. Isto é uma forma de desviar a atenção de problemas importantíssimos que temos para discutir», finaliza.

 

‘Se queremos mudar o hino, temos que mudar o salário médio’

Por sua vez, a historiadora Raquel Varela defende à LUZ que, para mudar o hino, é preciso mudar primeiro outras coisas. «Gostava muito que a situação mudasse. Portugal é um dos países mais desiguais da Europa, o empobrecimento é enorme e há muitos setores sociais que são cada vez mais excluídos da sociedade porque não têm direitos laborais e, consequentemente, direitos sociais», começa por enquadrar, acrescentando: «Não é por mudar o hino que isso vai mudar».

Raquel Varela acrescenta que «a ideia de que nós, por termos uma linguagem chamada inclusiva, um hino diferente, mudamos a sociedade, é uma ideia dominante na última década, errada», defendendo que «temos que mudar a sociedade se queremos mudar a vida». Nesse sentido, a historiadora diz que lhe parece «absolutamente incrível que haja sistematicamente uma discussão sobre palavras, sobre linguagem, sobre hino, sobre estátuas, e não haja uma discussão séria sobre o salário médio que é vergonhoso». É que, atira, «se queremos mudar o hino, temos que mudar o salário médio. Se queremos mudar o hino, temos que expropriar a EDP e a Galp».

No fundo, Raquel Varela considera que «é preciso uma História nova mas para isso é preciso fazer a História. Não é ficar à espera que mudando as palavras a história mude. Gostaria muito de ter um hino novo, gostaria muito que o hino de Portugal fosse a Grândola, mas para isso é preciso mudar Portugal. Portugal não vai porque nós mudamos o hino. O hino vai mudar quando nós mudarmos Portugal», defende.

 

‘Um hino que, no fundo, é um convite à guerra’

De outra opinião é o André Barata, filósofo e professor na Universidade da Beira Interior. À nossa revista, diz que é a favor desta mudança por três razões. A primeira é, para si, clara: «Incomoda um pouco um hino que, no fundo é um convite à guerra. No fundo é uma posição bélica e que, sempre que se quer mobilizar as pessoas, até para competições desportivas, faz dos adversários inimigos e isso não é bom. Não é boa essa postura bélica sobretudo num país que não tem feito essa História, desde há muitos anos que não faz essa História», começa.

No seu ponto de vista, no tempo em que o hino foi escrito, fazia sentido. E, nessa altura até defende que foi muito importante. «Era uma espécie de grito de dignidade. Mas isso foi no tempo do ultimato, em 1890, já não faz sentido, sobretudo quando vamos fazer 50 anos de democracia e os 50 anos de democracia foram todos no sentido de uma postura pacifista, anti-belicista e o hino vai completamente ao arrepio dessa ideia».

Por outro lado, acrescenta o filósofo, «há aquela ideia que passa muito nos manuais escolares e em muitos contextos culturais portugueses que é temos que lutar pela reposição do esplendor passado, aquela coisa das Descobertas, o período dourado do século XVI, Manuelino, por aí fora, da grande presença de Portugal pelo mundo fora» só que, no seu ponto de vista, isso já não é o grande desafio que neste momento importa a Portugal.

Para André Barata é claro que, neste momento «Portugal não precisa de crescer para fora, precisa de crescer para dentro, está a perder a população, tem desafios do seu tempo, que são outros. Além de que esse esplendor também tem muitos lados negros, tem lados de colonização, até de compromissos muito fortes com a escravatura. Coisas que merecem um olhar crítico e que hoje em dia já não são aquilo que compõem os valores fundamentais que queremos transmitir como comunidade futura para o nosso país». Sobretudo às crianças, como defende.

O último problema que o professor da UBI aponta está relacionado «com uma espécie de complexo português de hipervalorização do passado que tem que ver justamente com essa questão do esplendor mas também com uma relação com o passado excessivamente referencial o que torna muito difícil a crítica mas também torna muito difícil libertar o país para uma ideia de projeto».

Ou seja, explica à LUZ, «a sua representação ser uma representação mais virada para o futuro, o que é que ele quer para o futuro e não tanto estar a lamber as feridas do passado. Tem que ver com a História portuguesa que a gente sabe, o momento em que se perdeu a independência, mas isso foi há 400 anos».

Questionado sobre se mudar a letra do hino nacional não nos poderia fazer perder a identidade, o professor defende que não. Até porque, no seu entender, «uma identidade bem vivida é uma identidade questionada, criticada e metamorfoseada e que se transforma. Isso é que é uma identidade».

E deixa a questão: «O que é proporcionar uma identidade às novas gerações se não proporcionar-lhes possibilidade de elas, com o passado que trazem, fazer disso o futuro? Se não podem fazer disso o futuro, se só podem simplesmente acatar essa identidade, então não faz sentido. Além de que o país não é já isso. 50 anos de democracia é já muita História. Muita história em que um dos d’s era descolonizar. Então porquê que falamos no esplendor? O hino fala num esplendor que é, no fundo, o esplendor relacionado com o império colonial. Ou um hino que chama para lutar contra canhões quando esses canhões, no fundo, estavam a pôr em causa a integridade do império colonial? No fundo era essa questão».

Defende que Portugal já tem uma identidade feita de história bem sedimentada e que essa história deveria estar, de alguma maneira, contemplada no hino que cantamos. «Penso muito nas crianças porque acho mesmo isso. Penso que o hino, fundamentalmente, serve como entrada para a ideia de democraticidade nacional».

Saudando a proposta de Dino d’Santiago, André Barata recorda que não é a primeira vez que se sugere esta mudança que já foi lembrada há 25 anos por António Alçada Baptista. «Não discutir é não discutir identidade. Ora, se assumimos que não discutir identidade é que é identidade, então temos aqui um problema, temos um atavismo. Devemos isso às gerações futuras. Quem está interessado na identidade nacional e na comunidade nacional e na portugalidade, deve isso às gerações futuras: discutir o seu hino», finaliza.

 

Uma ideia que não é de agora e um hino que já foi mudado

A verdade é que este tema já tinha sido colocado à tona há 25 anos, em 1997 por António Alçada Baptista, então presidente das comemorações do Dia de Portugal, Camões e das Comunidades Portuguesas e que morreu em 2008. «A própria letra do nosso hino nacional não me parece adequada à nova civilização, não pode ter nenhum eco no coração da juventude, educar a vitalidade da pátria gritando às armas e propondo-nos marchar contra os canhões», disse na altura, nas cerimónias de comemoração desse dia. Por essa altura, várias figuras institucionais presentes nessa festa rejeitaram a ideia garantindo que o hino é um símbolo. E enquanto uns diziam que a letra deveria dar mais ao amor, outros foram claros: «No hino não se toca». Já Jorge Sampaio, à data Presidente da República, não quis, nessa ocasião, comentar a bomba lançada por Alçada Baptista.

Ainda assim, sendo feito em Portugal, a alteração ao hino não seria inédita. Em França, há uns anos, existiu uma grande polémica precisamente porque houve quem achasse que o hino, a Marselhesa, devia ser mudado. Em especial o fim da frase ‘qu’un sang impur abreuve nos sillons’ (que um sangue impuro regue os nossos campos). Isto era considerado uma incitação à violência.

Já em Espanha, o hino nacional é chamado de Marcha Real e não tem letra. A última letra foi escrita em 1928, mas por ter sido confundida com o regime franquista foi retirada. Já existiram várias tentativas de devolver uma letra a esta música, mas sem sucesso.

E há mais casos. No Canadá, o hino também sofreu alterações há cerca de quatro anos, não pela violência mas pela igualdade de género. Onde se lia «em todos os seus filhos» lê-se «em todos nós». O diploma foi aprovado com a oposição dos conservadores.

Certo é que, em Portugal, a letra também já foi sofrendo alterações. Chama-se ‘A Portuguesa’ e foi composto em 1890 como uma canção de protesto devido ao ultimato inglês que exigia a retirada dos portugueses dos territórios de Moçambique e Angola. A letra foi escrita por Henrique Lopes de Mendonça e a música composta por Alfredo Keil.

Mas, ao contrário da letra atual, a versão completa nessa altura afirmava a independência e apelava ao patriotismo contra os ‘Bretões’ (britânicos), uma palavra que foi substituída na versão atual pela palavra ‘canhões’ que agora se quer alterar. A monarquia proibiu a música mas com a implantação da República em 1910 a canção voltou e foi consagrada como Hino Nacional em 19 de junho de 1911 pela Assembleia Constitutiva.