O Pai Tirano, recordam-se? “Ò clemência! Ò martírio!_Estará porventura periclitante a saúde desse querido menino que ajudei a criar?!” Desta vez não se tratava de nenhum menino mas sim de um sapateiro, Domingos Joaquim da Silva, que desapareceu misteriosamente da sua casa sita na Rua Carvalho Araújo, 95, cave direito. Ò_clemência! Domingos era uma figura estimada no bairro em que vivia, um bonsaraz que, muitas vezes, até fazia serviços à borla. Frequentava um café na Rua da Prata, tinha lá a sua tertúlia, também era lá que costumava combinar encontro com a esposa, uma senhora simpatiquíssima, de jeitos delicodoces, D. Maria Júlia da Silva, empregada num estabelecimento comercial do Rossio, caminhando os dois, em seguida, para casa, como casal que se estimava sem exageros públicos de ternura. Vai daí, e Domingos desaparece de um dia para o outro sem dar cavaco. Os jornais pegaram na história com avidez. Ò martírio! Estaria por acaso ainda vivo o tão querido sapateiro por quem todos os clientes tinham tão grande simpatia?
Dez dias decorridos sem notícias do agradável mamífero, a hipótese do suicídio foi posta de parte. Não havia sinal nenhum em que a teoria pudesse assentar. Uma suposição precipitada, como se verá. Domingos era um sujeito alegre, divertido, tinha a sua vida-vidinha sem sobressaltos mas, apesar de tudo, parecia sofrer de uma alteração de personalidade recente, segundo Maria Júlia, bastante ensimesmado e, algo de estranho nele, recusava todas as visitas à família mais próxima, algo que anteriormente apreciava de sobremaneira. Sondados os amigos que via diariamente, seus antigos camaradas no exército ou, melhor dizendo, na Armada, ficou a polícia a saber que Domingos começara a lamentar-se de falta de trabalho e de dinheiro e, ainda mais estranhamente, queixava-se de não ser devidamente cuidado pela mulher, levantando a possibilidade de ela ter um caso extra-conjugal, enervando-se de forma excessiva sempre que abordava o assunto. Decididamente, tornara-se um homem infeliz e revoltado, caindo num carácter completamente oposto ao que exibia anteriormente. Por via das dúvidas, os sapadores trataram de fazer buscas aturadas nos lodaçais do_Tejo, pondo a hipótese de este ter posto fim à existência que, pelos vistos, dera uma volta significativa. E tanto foçaram na lama ribeirinha que lá deram com um cadáver já decomposto e alegremente devorado pelos caranguejos. Um cadáver que não era o do sapateiro. A esse ninguém mais pôs a vista em cima.