Vice-chefe do Exército suspeito de encobrir roubo de armas em África

Vice-chefe do Exército suspeito de encobrir roubo de armas em África


O tenente-general Rui Pereira impediu a comunicação de um roubo de armas de guerra durante uma missão da ONU na República Centro-Africana, alegando terem desaparecido numa troca de tiros com rebeldes muçulmanos, o que não era verdade. Agora é arguido num processo por suspeita de encobrimento.


O vice-chefe do Estado-Maior do Exército, tenente-general Rui Guerra Pereira, foi constituído arguido, pelo Ministério Público, por suspeita de encobrimento, de um furto de armas ocorrido há quatro anos no seio do corpo expedicionário português integrado na missão internacional da ONU para manutenção de paz na República Centro-Africana (RCA) – soube o Nascer do Sol de fonte militar.

O furto de armas do destacamento do Exército português, um conjunto de pistolas Walther de 9mm – só usadas por forças policias e militares e que atingem valores elevados no mercado negro –, ocorreu em janeiro de 2019 num campo da MINUSCA (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana), durante uma operação em Bambari destinada a evitar a reconquista daquela que é a segunda maior cidade do país pelo grupo armado rebelde da chamada União para a Paz na República Centro-Africana (UPC), de obediência muçulmana, que dali fora expulso após a guerra civil (2004-2007).

O comandante da unidade portuguesa, tenente-coronel paraquedista Óscar Fontoura, comunicou o furto a Guerra Pereira, na qualidade de comandante das forças terrestres, mas o já vice-CEME ter-lhe-á pedido que fizesse um relatório dando conta de que as Walther tinham desaparecido durante os confrontos com os rebeldes.

Seria, com efeito, mais fácil justificar o desaparecimento das armas durante uma operação que envolveu trocas de tiros do que em resultado de um furto. Deste modo, o comandante não participou o incidente à MINUSCA, o que impediu a autoridade militar policial da missão das Nações Unidas de investigar o caso tentando encontrar os responsáveis e recuperar as armas.

O Exército português abriu na altura um processo interno de averiguações, que no entanto foi arquivado sem qualquer procedimento disciplinar, depois de se cumprir a norma habitual de o submeter ao chefe do Estado-Maior, general José Nunes da Fonseca. Contudo, após ter recebido uma denúncia anónima em 2020 em que era descrito o logro, a Polícia Judiciária Militar (PJM) abriu uma investigação própria sobre o caso, cujo relatório final, concluído recentemente, propõe que todos os envolvidos vão a julgamento. O Ministério Público (MP) está agora a avaliar a prova recolhida, podendo deduzir acusação ou, se discordar da PJM, arquivar. Tendo em conta que constituiu o vice-CEME arguido, tudo indica que este será acusado e o processo seguirá para julgamento.

Vice-CEME escolhido por João Cravinho 
Nunes da Fonseca confirmou ao Nascer do Sol a existência do processo de averiguações interno sobre o desaparecimento das armas, mas acrescentou desconhecer qualquer situação de encobrimento. Embora Guerra Pereira o tenha informado de que iria ser ouvido pelo MP na qualidade de arguido, o CEME garante: «A única informação que tenho é que tudo se passou numa situação de combate». Quanto ao seu vice, optou por não prestar declarações a este jornal, invocando o facto de o processo se encontrar em segredo de justiça. 

Contactado pelo nosso jornal, o ex-ministro da Defesa respondeu através da sua assessora de imprensa assegurando que descolhecia completamente o assunto.

O furto foi levado a cabo num acampamento da MINUSCA instalado em Bambari para o desencadeamento da operação contra o UPC, liderado por Ali Darassa, que ocorreu entre o Natal e o Ano Novo. Então baseado em Bokolobo, a uns 70 quilómetros de Mambari, o UPC, que é o grupo armado mais bem organizado e melhor equipado da zona, e cujo líder é responsabilizado pelo governo norte-americano do cometimento de «graves abusos de direitos humanos», ameaçava retomar esta cidade para contestar a celebração de um acordo de paz marcado para 7 de fevereiro de 2019 em Kartum (Sudão), e que Darassa recusava subscrever.

A Força Rápida da MINUSCA, integrada pelos militares lusos, conseguiu não só repelir a tentativa do UPC como decidiu atacar o seu quartel-general em Bokolobo, numa manobra lançada em duas frentes: o destacamento português avançou pelo norte e uma companhia ruandesa pelo sul. Os confrontos duraram cerca de 24 horas (sem baixas para a tropa da ONU), os rebeldes fugiram para o mato e a operação acabou por ser interrompida, considerando-se que a força de manutenção de paz havia atingido os objetivos. Também em fuga, Darassa acabou por comparecer no mês seguinte em Kartum para a assinatura do acordo de paz.

Foi durante a operação, que durou cerca de um mês, que as pistolas da tropa portuguesa foram roubadas do interior das próprias tendas do acampamento da MINUSCA.

O vice-CEME fora nomeado em dezembro de 2018 pelo então ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, desencadeando alguma polémica, por ter sido a primeira vez que o ocupante do cargo foi empossado nas instalações do próprio Ministério e não na sede do Estado-Maior, como era habitual.

Terá sido uma forma de o atual ministro dos Negócios Estrangeiros mostrar publicamente que a nomeação fora da sua iniciativa, se bem que Guerra Pereira seja tido como próximo do Presidente da República. Especula-se que, com a sua nomeação como arguido, o vice-CEME possa ter posto o lugar à disposição, mas que José Nunes da Fonseca não terá aceitado.