Pelé 3. “Farto de saber que é um semideus, que tem a perder ao tentar ser Deus completo?”

Pelé 3. “Farto de saber que é um semideus, que tem a perder ao tentar ser Deus completo?”


Jogou quatro fases finais de campeonatos do mundo – em 1962 e 1966 com lesões graves – e foi três  vezes campeão. Em 1958 era ainda apenas um menino mágico; em 1970, como escreveu Sérgio Rodrigues, resolveu desafiar Deus.


(continação da última edição)

Entre 1958 e 1970 Pelé jogou quatro fases finais de campeonatos do mundo, duas delas marcadas por lesões complicadas – a primeira em 1962, logo no jogo de estreia, frente à Checoslováquia; a segunda em 1966, fazendo apenas dois jogos, o último contra Portugal e contra a rija intervenção de Morais. E nunca outro jogador marcou tanto a história dos Mundiais, a começar logo pelo da estreia, na Suécia, onde o Brasil conseguiu ser, finalmente, pela primeira vez, campeão.

Na verdade nunca se tinha visto nada igual ao futebol que os brasileiros mostraram frente a Áustria, Inglaterra, URSS, País de Gales, França e Suécia. Edson ainda era um menino capaz de se espantar com o facto de não haver um único jogador de cor em todas as outras seleções: “Só o Brasil é que tem negros?” O psicólogo encarregado de traçar o perfil mental dos jogadores foi taxativo: “Pelé é obviamente infantil. Carece de estilo de combate”. Talvez isso tenha feito com que o técnico Vicente Feola o tenha deixado no banco nos dois primeiros jogos. Tal e qual como Garrincha: “Um irresponsável!” Mas quando ambos entraram na equipa para o jogo decisivo contra a União Soviética, o mestre da crónica Nelson Rodrigues não tardou a soltar um brado: “Isso aí não existe!” Na final de 29 de Junho, frente à equipa da casa, Pelé marcou dois dos cinco golos da vitória (5-2 – ele marcou seis golos nesse Mundial), o mundo rendeu-se a um estilo espectacular de futebol ofensivo sublimado com fintas, tabelinhas e truques de magia nunca vistos. Mário Filho, irmão de Nelson, que deu o nome ao Maracanã, resumiu: “O olhos do universo abriram-se para Pelé. Antes se via Pelé como se ele não fosse Pelé. Era o mesmo Pelé, mas não era Pelé”. O título fez do garoto de Três Corações o melhor jogador do mundo logo ali, sem discussões. No minuto 56 da final aparou uma bola com o peito, levantou-a por cima do defesa Gustavsson, contornou-o e chutou de primeira para um golo belíssimo. É mesmo: “Isso aí não existe!” No último minuto aproveitou uma bola que caía na grande-área sueca e tocou-a por cima do guarda-redes como se fosse em câmara lenta. “Depois”, contou Pelé, “de repente desmaiei diante da baliza. Garrincha correu a levantar-me as pernas para me levar o sangue à cabeça. Quando voltei a mim, o jogo já tinha acabado”. Nelson, a seu jeito, fez um poema em prosa: “Dezassete anos! Na idade em que o pobre ser humano anda quebrando vidraça, ou jogando bola de gude, ou raspando perna de passarinho a canivete, Pelé torna-se campeão do mundo. Estava lá um rei, Gustavo, da Suécia. E viu-se, então, essa coisa que estaria a exigir um verso de Camões: – o rei desceu do seu trono e foi cumprimentar, foi apertar a mão do menino Pelé”.

Se Pelé passou como cão em vinha vindimada pelos Mundiais de 1962 e 1966, em 1970 atingiu todo o seu esplendor. Numa linha avançada de n.º 10 (cada um deles era 10 na sua equipa) – Gerson, Jairzinho, Rivelino, Tostão e Pelé – jogou o mais belo futebol que jamais passou pela face da Terra. O Sunday Times explicou em manchete: “Como se soletra Pelé? D-E-U-S!” Os adjectivos multiplicaram-se até ao infinito. Pelé atingia a aura divina e garantia ser o melhor de todos os tempos. Até os seus quase-golos foram obras de arte: o remate de meio-campo que ia enganando Victor; o vai não vai mas vai mesmo frente a Mazurkiewiz; a maneira como respondeu, de primeira, a um pontapé de baliza do keeper uruguaio… Sérgio Rodrigues escreveu: “Pelé já é Pelé. Está farto de saber que é um mito, um semideus, o que tem a perder tentando ser um deus completo? Aí ele não faz o certo, faz o sublime. Troca o caminho batido do gol, o gol certo que tinha feito tantas vezes, pelo incerto que, como veremos, jamais faria”.

Três vezes campeão do mundo, Edson Arantes do Nascimento percebeu que nesse Mundial do México tinha atingido o estatuto divino da imortalidade. Por isso, amigos meus, se vos disserem que ele morreu, pura e simplesmente não acreditem. (continua na próxima edição)