Vivemos todos, embora de maneira diferente, as crises sucessivas e sobrepostas que afetam o que, para simplificar, poderemos apelidar de normalidade da vida.
Claro está – todos sabemos – que o que se afigura normal para uns, não o é, necessariamente, para outros.
Ou antes, há – sempre houve – uma experiência de normalidade de que apenas uns tantos gozam e uma outra normalidade que abrange, condiciona e afeta a grande maioria das pessoas.
O pouco conhecimento, por parte destas últimas, do que é e como se alcança verdadeiramente a normalidade de que usufrui uma certa minoria permitiu sempre que, em circunstâncias habituais, ambas as normalidades coexistissem.
De um lado, a minoria encarava sem sobressalto, ou grandes problemas de consciência, o que considerava ser normal usufruir.
De outro, ignorando em que consistia, na realidade, a normalidade de vida de uma certa minoria, a maioria aceitava também, em relativa paz, as mais modestas circunstâncias de vida que, em geral, sempre conhecera.
O facto de, por causa das crises mais recentes, a normalidade da vida da maioria das pessoas se ter subitamente degradado para além do que era expectável alterou, todavia, as regras do jogo.
Tal degradação transformou, pois, a sua já de si precária normalidade numa verdadeira anormalidade: uma anormalidade que começou a afetar seriamente a sua maneira de viver – mesmo que a mais modesta – e, pior, defraudou violentamente as expectativas de um futuro melhor.
Aqueles que a sofreram passaram, pois, a olhar com mais atenção para a espantosa manutenção da normalidade da vida de muitos dos que integram a minoria.
Ora, foi precisamente aí que o que a minoria sempre conseguira realizar sem publicidade para poder manter – ou melhorar mesmo – a sua própria normalidade de vida começou a interessar à maioria.
Até então, a maioria não entendia muito bem por que razão a normalidade da vida de uns era quase sempre imutável – e, quando mudava, era para melhor – e era a sua precária normalidade que, nas circunstâncias da mesma crise, se degradava mais e sempre mais até se tornar numa verdadeira e crua anormalidade.
Por tal razão, a vontade de escrutínio da maioria sobre os mecanismos que permitiam apenas a alguns manter a normalidade da sua vida foi crescendo.
A dado passo, como resultado dessa indiscrição mais aguda, começaram a emergir e evidenciar-se mais nítidos os mecanismos que permitem a manutenção, ou mesmo a melhoria, da normalidade de vida de uma certa minoria.
Aquilo que muitos da minoria consideravam absolutamente razoável fazer para conservarem a normalidade das suas vidas foi, entretanto, encarado – com curiosidade primeiro e depois como escândalo – pela maioria.
Como fora possível que tivesse acontecido?
Como era, de facto, possível que a mesma situação que originara a degradação da normalidade de vida da maioria – transformada agora em séria e dura anormalidade – permitisse, afinal, a alguns manter, ou melhorar mesmo, a sua normalidade de vida?
Num primeiro momento, tal indagação ficou-se pela constatação dos desmesurados proventos auferidos, que permitiam – mesmo com algumas perdas – manter a normalidade de vida adquirida pela minoria.
Só que, num segundo momento, numa indagação mais funda, tornaram-se mais evidentes, também, algumas das subtilezas que permitiam preservar ou melhorar a normalidade de vida de uns quantos que, há mais ou menos tempo, se enquadravam ou haviam ascendido à minoria.
Sem grande profundidade analítica, passou a falar-se, então, em corrupção e crimes conexos, enchendo-se com isso páginas de jornais, noticiários da TV, da Rádio e redes sociais.
Tal falatório passou a concentrar a atenção de todos – maioria e minoria – nos mais descuidados ou gananciosos elementos desta última: nos tontos que, gulosos em demasia, se deixaram apanhar.
Maioria e minoria pareceram então convergir numa mesma solução: punam-se os corruptos.
Todavia, cedo se começou a perceber, também, que, para lá daquilo que pertencia à Justiça indagar e punir, havia, ainda, outros mecanismos mais ocultos que, por uma ou outra via, asseguravam permanentemente a compensação devida à reposição da normalidade de vida que uma certa minoria continuava a desfrutar.
Percebeu-se, então, que tais mecanismos estruturais funcionavam permanentemente, cavando, ao longo do tempo, a diferença entre as vidas normais de uns e de outros, mesmo nos períodos em que a crise estava apenas latente.
Não mais foi possível, então, continuar a dizer-se apenas: «à Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política».
Muito do que afetava sobretudo a normalidade da vida das pessoas da maioria, deixando, no essencial, ilesas as pessoas da minoria, pouco tinha, enfim, a ver com a crise e os mais evidentes casos de corrupção.
Os mecanismos que, afinal, asseguravam a normalidade da vida de uns, e não a de outros, podiam até não ser ilegais, mas não deixavam, por isso, de ser menos chocantes e iníquos do ponto de vista político e social.
Na realidade, eles eram verdadeiramente aptos a manter e acentuar ainda mais, quando necessário, as distintas normalidades de vida de uns e de outros, mesmo quando – ou sobretudo quando – as crises pudessem ocorrer.
À segurança da vida normal de uns correspondiam, consequentemente, as inopinadas e fundas quebras de estabilidade na já de si instável normalidade da vida dos outros.
Aqui chegados, muita coisa passou a poder acontecer.
Esperemos, por isso, que a Política assuma a sua função e possa, mais fácil e rapidamente do que a Justiça, corrigir os mecanismos que possibilitam a uns ver a sua vida cíclica e anormalmente arrasada e a outros conseguirem continuar, alegremente, a solidificar a normalidade confortável que, de uma ou outra maneira, conseguiram alcançar.