O outro nome


Estou aqui para tudo o que precisares e, como sempre, não precisas de nada porque nunca quiseste que me angustiasse por ti. 


Pai, tu, meu sábio, que me ensinaste tudo, até a ser menino, não podes agora explicar-me como é ser de Águeda sem ti. Visito-te nessa tua casa nova, minúscula, de pedra. Há tantos anos que não entrava em cemitérios, nem no dia em que vieste para aqui morar fui capaz de entrar contigo, havia muita gente em teu redor e eu queria-te só para mim, que me desses a mão e eu usasse um bibe e o sol estivesse a pino sobre Santa Cruz, o ponto mais alto da ternura. Veríamos as Desertas ali tão perto, apontavas-me cada uma das ilhas, a Deserta Grande, o Ilhéu Chão e o Bugio, o mar tão azul, um azul que ficava preso nos olhos, a praia de seixos e o ruído único das ondas quando enrolam e desenrolam seixos, tornado-os cada vez mais lisos. Atiravas um deles de esguelha, num intervalo do requebro da vaga, e eu ficava a vê-lo saltitar sobre a água, uma, duas, três, quatro vezes, antes de ele ir à procura do fundo do oceano que era o seu. Talvez procure igualmente o fundo de mim neste instante em que me submeto à tua frente. “Aqui me tens aflito e retirado/Como quem deixa à porta o saco para o pão…”, escreveu o Nemésio. Foram tantos os poemas que me ensinaste a recitar de cor e eu, perdido nos poemas, deixei de ter lágrimas para te dar. Nós os dois, aqui, eu vivo, tu morto. Qual de nós está do lado certo dos caminhos que aqui nos trouxeram? A penumbra já caiu sobre este lugar antigamente cheio de vida, a nossa infância entornada no adro, para lá destes portões de ferro pelos quais entraste para nunca mais saíres. Tenho medo que sintas frio, que precises de conversar, que queiras ir buscar madeira para a lareira à casa da lenha, que queiras ouvir ópera pela madrugada e simplesmente a morte não te deixe. Estou aqui para tudo o que precisares e, como sempre, não precisas de nada porque nunca quiseste que me angustiasse por ti. De que serviu, pai? De que serviu se neste momento angústia é o outro nome que a minha vida tem?

O outro nome


Estou aqui para tudo o que precisares e, como sempre, não precisas de nada porque nunca quiseste que me angustiasse por ti. 


Pai, tu, meu sábio, que me ensinaste tudo, até a ser menino, não podes agora explicar-me como é ser de Águeda sem ti. Visito-te nessa tua casa nova, minúscula, de pedra. Há tantos anos que não entrava em cemitérios, nem no dia em que vieste para aqui morar fui capaz de entrar contigo, havia muita gente em teu redor e eu queria-te só para mim, que me desses a mão e eu usasse um bibe e o sol estivesse a pino sobre Santa Cruz, o ponto mais alto da ternura. Veríamos as Desertas ali tão perto, apontavas-me cada uma das ilhas, a Deserta Grande, o Ilhéu Chão e o Bugio, o mar tão azul, um azul que ficava preso nos olhos, a praia de seixos e o ruído único das ondas quando enrolam e desenrolam seixos, tornado-os cada vez mais lisos. Atiravas um deles de esguelha, num intervalo do requebro da vaga, e eu ficava a vê-lo saltitar sobre a água, uma, duas, três, quatro vezes, antes de ele ir à procura do fundo do oceano que era o seu. Talvez procure igualmente o fundo de mim neste instante em que me submeto à tua frente. “Aqui me tens aflito e retirado/Como quem deixa à porta o saco para o pão…”, escreveu o Nemésio. Foram tantos os poemas que me ensinaste a recitar de cor e eu, perdido nos poemas, deixei de ter lágrimas para te dar. Nós os dois, aqui, eu vivo, tu morto. Qual de nós está do lado certo dos caminhos que aqui nos trouxeram? A penumbra já caiu sobre este lugar antigamente cheio de vida, a nossa infância entornada no adro, para lá destes portões de ferro pelos quais entraste para nunca mais saíres. Tenho medo que sintas frio, que precises de conversar, que queiras ir buscar madeira para a lareira à casa da lenha, que queiras ouvir ópera pela madrugada e simplesmente a morte não te deixe. Estou aqui para tudo o que precisares e, como sempre, não precisas de nada porque nunca quiseste que me angustiasse por ti. De que serviu, pai? De que serviu se neste momento angústia é o outro nome que a minha vida tem?