Aproxima-se o dia de Natal e os portugueses, até por razões culturais e religiosas já antigas, parecem querer mostrar, uns aos outros, uma melhor disposição e uma atenção e delicadeza que, infelizmente, raramente usam em outros dias.
Na escada pública que ladeia a casa onde vivo, em Portugal, sobem e descem hoje pessoas das mais variadas nacionalidades, com as mais diversas culturas e práticas sociais.
Nunca, neste período do ano, tantos estrangeiros frequentaram essa via pública da vila onde resido.
A maioria deles são já residentes, outros são turistas, mas, em conjunto, contribuem, com as suas conversas nas línguas próprias, para edificar, nesta minha terra, uma autêntica e sublime Babélia.
Uns falam alto e abrem as vogais, outros, como os portugueses, comem as sílabas e falam, quase sempre, com vogais mudas, o que dificulta a compreensão do que dizem.
O certo é que, quando se cruzam comigo nas referidas escadas, a grande maioria deles cumprimenta-me.
O mesmo já não acontece com os portugueses.
A generalidade destes já nem ao trabalho se dão de roufenhar uns mastigados bons dias.
Na verdade, muito se alterou a sociabilidade dos portugueses nestas últimas décadas, e, infelizmente, não foi para melhor.
Quando, por exemplo, me desloco de autocarro nos Países-Baixos e nele não encontro lugar sentado, é raro que um ou mesmo uma adolescente, olhando para os meus cabelos brancos, não se levante do banco para que eu aí me sente.
Fazem-no quase todos, em relação a todos e independentemente das suas origens sociais e da comunidade cultural em que se integram.
Esse hábito de respeito pela idade do outro – pelo outro mais velho e, por isso, presumivelmente mais débil – há muito que rareia no nosso país.
Quando criança e adolescente, sempre que um professor entrava na aula, nós, os seus alunos, levantávamo-nos: era automático.
Fazíamo-lo com a noção do respeito devido à função de professor que ele ali exercia e representava e, também, por sermos mais novos e dele, mais velho, esperarmos as lições que nos haveriam de guiar na vida.
Hoje – dizem-me – isso já não acontece.
Já tenho mais de quarenta anos de serviço na magistratura.
Quando comecei, ensinaram-me que nunca devia pedir a um oficial de justiça que se comunicasse, em vez de mim, com um outro magistrado.
Por uma questão de respeito, a correspondência entre magistrados devia – deve – fazer-se, pessoal e diretamente, de um para o outro.
Presentemente, porém, recebo, com frequência crescente, informações e pedidos de apoio de colegas, que me são dirigidas, não por eles, mas pelos funcionários que com eles trabalham.
Por outro lado, os termos em que, hoje-em-dia, alguns magistrados e alguns funcionários se correspondem profissionalmente, vêm atingindo níveis de indelicadeza, e, em certos casos, mesmo de grosseria, jamais imagináveis quando comecei a trabalhar.
E, o pior é que, nas mais das vezes, nem sequer é propositado: fazem-no por não saberem fazer de outra maneira.
E, para que não se diga que isso passou a suceder sobretudo depois do 25 de Abril, esclareço que comecei a trabalhar já depois de tal acontecimento histórico e, durante muito tempo, não me dei conta de tais incivilidades.
Não se trata de criticar aqui a falta do chamado «respeitinho» que nos ensinavam antigamente, no outro regime.
Entre o «respeitinho é muito bonito» e o respeito cívico enxuto, mas delicado, pelo outro com quem – mesmo que em diferentes posições – se trabalha na realização do bem comum e dos interesses individuais dos que recorrem aos serviços públicos, vai uma enorme diferença.
Quem trabalha para uma instituição pública, uma instituição que existe – ou devia existir – para, precisamente, atender às necessidades dos cidadãos, deve ter por estes o mesmo respeito que desenvolve para com os que consigo laboram nos mais distintos planos hierárquicos e técnicos.
O respeito que é devido no plano do relacionamento institucional deve, pois, servir de padrão e de espelho ao relacionamento que é devido na comunicação com os cidadãos que usam os serviços públicos.
Quando um deles não acontece, raramente o outro se verifica.
Assim, mesmo sem testemunhar, podemos aperceber-nos, através do estilo de comunicação interno, de que tipo de tratamento são os cidadãos vítimas quando lidam com certos serviços.
Não se sugere, todavia, aqui, que se passe a usar, de novo, tratamentos bajulatórios e submissos com os superiores ou com os iguais.
Lamenta-se, apenas, que se não utilizem, com todos, as mais elementares regras de cortesia, que outras não são, afinal, do que as que servem para manifestar o respeito devido a todos os cidadãos.
Confesso que não sei como se chegou a um tão grande estado de rudeza no relacionamento profissional, interno e externo, na esfera de alguns serviços públicos.
Sei, isso sim, que tal rudeza proporciona um ambiente e uma cultura de trabalho que tende a apagar as fronteiras de responsabilidade próprias de cada função, promovendo, assim, em simultâneo, a desresponsabilização geral dos serviços e dos que nele servem.
Quem sabe relacionar-se com respeito com os que consigo trabalham, em uma ou em outra posição hierárquico-funcional, tende a saber relacionar-se, igualmente, com os cidadãos que ao serviço público recorrem.
Além de que, a institucionalização de regras polidas no relacionamento profissional ajuda a manter barreiras defensivas que inibem o abuso de poder e, noutro plano, o desenvolvimento de uma cultura de trabalho laxista e, demasiadas vezes, propiciadora de irregularidades mais graves e que a todos afetam.
Talvez que o Natal devesse, por isso, repetir-se sucessivamente ao longo do ano.