Eu, rato, me confesso


Por isso, eu rato me confesso: hoje mesmo, pela manhã, quando tomar o caminho do norte, não é para Águeda que me dirijo, é para esse Lugar-em-Forma-de-Águeda que de Águeda só tem ainda um resto de alma dos meus amigos/irmãos de cujo abraço vou à procura.


O Natal veio e foi-se. Num daqueles repentes que nos faz desconfiar de que outro já estará aí à porta pronto a bulir-me com os nervos. Há muitos, muitos anos que não sabia o que era o Natal sem Águeda. Não que Águeda continue a ter a importância que já teve – lenta mas eficazmente todos os assassinos conseguiram transformar a terra em dinheiro. Quando digo terra, digo chão. Do chão de Águeda começou, ainda na minha pós-adolescência, a brotar mamarrachos de betão. Nada nem ninguém se opôs à maior devassa que alguma vez vi feita num lugar que foi cantado pelo poeta Adolfo Portela como Águeda-a-Linda. Sim, logo Águeda que é terra de poetas, como Pedro Homem de Melo e Manuel Alegre, que foi lugar onde António Nobre vinha, lá da sua Torre de Anto, repousar à Casa do Adro do seu tão amigo António Homem de Melo, o Toy. Mas vieram os ratos. Comandados por Flautistas de Hamelin de pacotilha. E como escreveu Alexandre O’Neill no seu Poema Pouco Original do Medo: “Havemos de chegar/Quase todos/A ratos”. Por isso, eu rato me confesso: hoje mesmo, pela manhã, quando tomar o caminho do norte, não é para Águeda que me dirijo, é para esse Lugar-em-Forma-de-Águeda que de Águeda só tem ainda um resto de alma dos meus amigos/irmãos de cujo abraço vou à procura. Ah! Anto, se ao menos essa paisagem triste, triste da tua Carta a Manuel nos levasse para a tristeza melancólica dos velhos choupos no Cais das Laranjeiras e para o enorme castanheiro-da-Índia que mandava no adro da igreja e do cemitério até mesmo mais do que Deus, essa tão aborrecida invenção do homem que teima em não servir para coisa alguma. Vou, resoluto, amargurado, mas vou. Chama-me o sangue. Chama-me a voz inconfundível do meu pai que me levou pelos labirintos da ternura. Vouporque, na verdade, há o encanto da infância ao qual a minha alma não resiste. Vou, mesmo sabendo que viajo na direção de tudo o que está morto.

Eu, rato, me confesso


Por isso, eu rato me confesso: hoje mesmo, pela manhã, quando tomar o caminho do norte, não é para Águeda que me dirijo, é para esse Lugar-em-Forma-de-Águeda que de Águeda só tem ainda um resto de alma dos meus amigos/irmãos de cujo abraço vou à procura.


O Natal veio e foi-se. Num daqueles repentes que nos faz desconfiar de que outro já estará aí à porta pronto a bulir-me com os nervos. Há muitos, muitos anos que não sabia o que era o Natal sem Águeda. Não que Águeda continue a ter a importância que já teve – lenta mas eficazmente todos os assassinos conseguiram transformar a terra em dinheiro. Quando digo terra, digo chão. Do chão de Águeda começou, ainda na minha pós-adolescência, a brotar mamarrachos de betão. Nada nem ninguém se opôs à maior devassa que alguma vez vi feita num lugar que foi cantado pelo poeta Adolfo Portela como Águeda-a-Linda. Sim, logo Águeda que é terra de poetas, como Pedro Homem de Melo e Manuel Alegre, que foi lugar onde António Nobre vinha, lá da sua Torre de Anto, repousar à Casa do Adro do seu tão amigo António Homem de Melo, o Toy. Mas vieram os ratos. Comandados por Flautistas de Hamelin de pacotilha. E como escreveu Alexandre O’Neill no seu Poema Pouco Original do Medo: “Havemos de chegar/Quase todos/A ratos”. Por isso, eu rato me confesso: hoje mesmo, pela manhã, quando tomar o caminho do norte, não é para Águeda que me dirijo, é para esse Lugar-em-Forma-de-Águeda que de Águeda só tem ainda um resto de alma dos meus amigos/irmãos de cujo abraço vou à procura. Ah! Anto, se ao menos essa paisagem triste, triste da tua Carta a Manuel nos levasse para a tristeza melancólica dos velhos choupos no Cais das Laranjeiras e para o enorme castanheiro-da-Índia que mandava no adro da igreja e do cemitério até mesmo mais do que Deus, essa tão aborrecida invenção do homem que teima em não servir para coisa alguma. Vou, resoluto, amargurado, mas vou. Chama-me o sangue. Chama-me a voz inconfundível do meu pai que me levou pelos labirintos da ternura. Vouporque, na verdade, há o encanto da infância ao qual a minha alma não resiste. Vou, mesmo sabendo que viajo na direção de tudo o que está morto.