O presente de final de ano de Little Simz

O presente de final de ano de Little Simz


O mais recente disco de Little Simz, No Thank You, editado na semana passada, é uma reflexão sobre o tratamento das estrelas do mundo do hip-hop. Este aclamado trabalho cimenta a posição da britânica como uma das mais inventivas artistas musicais do momento.


Antes de encerrar 2022, a rapper inglesa Little Simz decidiu oferecer um pequeno presente aos seus fãs, lançando, de surpresa, o seu quinto disco, No Thank You, um trabalho onde reflete sobre a condição de estrela no mundo do rap e das imposições colocadas pela indústria musical. 

Lançado na segunda-feira, 12 de dezembro, este trabalho continua a cimentar o lugar da artista como uma das mais talentosas e criativas do hip-hop, ajudando a impulsionar e a desenvolver as possibilidades deste estilo.

Se no seu disco anterior, Sometimes I Might Be Introvert (2021), galardoado, em outubro deste ano, com o Mercury Prize, um dos principais prémios de músico do Reino Unido que distingue o melhor álbum lançado por artistas britânicos, tenha criado um complexo trabalho onde fazia acompanhar as suas canções com belos arranjos orquestrais, que ajudavam a criar uma sensação de narrativa, em No Thank You existe uma lógica de mixtape, com canções que ganham vida própria e, através de influências de música soul ou gospel, ajudam a transmitir as indignações e questões que preocupam a britânica.

Mas para percebermos todos os problemas que Simz levanta neste disco temos que recuar um pouco. Simbiatu Abisola Abiola Ajikawo, conhecida como Simbi entre a sua família e amigos e o nome que, mais tarde, os fãs usariam de forma carinhosa para se referir à rapper, nasceu no distrito de Islington, em Londres, no seio de uma família nigeriana, onde foi educada maioritariamente pela sua mãe, que trabalhava numa casa de adoção.

Simbi frequentou o Mary’s Youth Club, um centro para jovens que também foi frequentado por outras estrelas como a cantora que deu voz à música Bleeding Love, Leona Lewis, a ex-vencedora do The X Factor, Alexandra Burke, ou a sua amiga, a atriz Letitia Wright, que agora assumiu o papel de Black Panther no universo cinematográfico da Marvel.
Foi neste local que a rapper começou a explorar os seus dotes artísticos, nomeadamente na música e dança, e foi também aqui que conheceu Dean Josiah Cover, alter-ego de Inflo, produtor, compositor e multi-instrumentista líder do aclamado coletivo Sault, que produziu a maior parte dos trabalhos de Simbi.

“Sempre me interessei por artes cénicas. Seja dança, música ou atuação, sempre foi uma paixão desde jovem”, revelou a rapper à Crack Magazine. “Foi no St Mary’s que realmente tive a oportunidade de explorar a arte e ser destemida. Contar com o apoio da minha família, que me incentivou, me levou às aulas e apoiou a minha música, definitivamente ajudou-me a crescer e a aumentar a minha confiança”, confessou.

Contudo, antes de se dedicar à música, à semelhança da sua amiga que agora é a protetora do reino fictício de Wakanda, a britânica também se dedicou a uma carreira como atriz, tendo conseguido papéis em séries como Spirit Warriors (2010) da BBC, Youngers (2013), em Afrofuturism (2017), onde serviu como narradora, e na terceira temporada da série da Netflix, Top Boy (2019). O mais recente papel da rapper foi no segundo filme do vilão do Homem-Aranha, Venom: Tempo de Carnificina, onde aparece num clube noturno a cantar uma música que partilha nome com a personagem titular.

Mas o futuro de Simz estaria inteiramente ligado à música. “O seu crescimento, dedicação ao ofício e impacto no meio através do seu talento são lindos de se testemunhar”, confessou Wright ao Guardian, acrescentando que é fã da música da amiga desde a sua adolescência. 

O seu disco de estreia surgiu em 2015, A Curious Tale of Trials + Persons, quando tinha apenas 21 anos, cantando rap com uma “dureza camaliónica” e com “um sentimento pouco comum de carga espiritual, espiritual semelhante ao de Lauryn Hill e Kendrick Lamar”, comparou a Pitchfork, seguido por Stillness in Wonderland (2016), um disco conceptual inspirado no universo da Alice no País das Maravilhas. 
No seu terceiro álbum, Grey Area (2019), a cantora conseguiu chegar a um público mais amplo, graças aos elementos mais confessionais, onde explora como foi a sua vida depois de fazer vinte anos, algo que descreve como uma “área cinzenta”.
“Nada é preto e branco. Nada está gravado em pedra. Acho que quanto mais falo sobre este assunto com os meus amigos e pessoas desta faixa etária, mais percebo que todos estamos a passar pelo mesmo”, cita o site Genius.
Mas o seu talento apenas ganharia claro destaque em Sometimes I Might Be An Introvert (um acrónimo para Simbi) onde explorou as diferenças da sua persona na vida privada e pública através de uma lírica acutilante, uma vulnerabilidade comovente e capacidade narrativa com compaixão que lhe permite ascender ao nível das lendas”, descreve a NME.

A música aborda os diversos problemas que a levaram a esconder-se na sua faceta mais introvertida, por exemplo, a ausência do seu pai enquanto estava a crescer, e, na canção I Love You, I Hate You, Simz pergunta: “Is you a sperm donor or a dad to me?”.

A cantora trouxe este aclamado álbum a Portugal, em junho, ao festival NOS Primavera Sound, onde confessou ter tido um “sick day”, que apenas melhorou quando, depois do imaculado concerto que ofereceu, e o que i esteve presente para comprovar, foi brindada com uma grande onda de aplausos para parabenizar aquele que foi um dos melhores concertos do festival. 

Em outubro, Simz recebeu o Mercury Prize por este disco. “Este é um álbum conseguido e complexo, mas, ainda assim, completamente acessível, é o trabalho de alguém que luta constantemente para chegar mais além”, justifica o júri deste certame, em comunicado. “Lida tanto com temas pessoais como políticos, enquadrando-os em música que é tão sofisticada quanto variada. Tudo no Mercury Prize tem a ver com iluminar álbuns de valor duradouro e verdadeira mestria. Sometimes I Might Be Introvert é ambas as coisas”.

Agora, com o lançamento do seu mais recente disco, No Thank You, que conta com a colaboração de caras familiares nos trabalhos da rapper, como o produtor Inflo ou a cantora Cleo Sol, Simz consegue manter a elevada fasquia do reportório que tem vindo a desenvolver. 

“A emoção é a arma secreta de Simz”, explica a Rolling Stone na sua crítica do disco. “A rapper tem um talento especial para partilhar histórias sinceras com uma convicção marcante que se instala profundamente no nosso peito”, escreve Will Dukes, que compara as emoções que sentimos a ouvir este disco com “todos os emojis” diferentes que temos no telemóvel e que transmitem uma grande paleta de sensações.

“Ela é uma excelente tecnicista, sem dúvida. Mas a pura técnica das suas rimas não se compara com a sua habilidade natural de criar canções comoventes que fazem o ouvinte rir, chorar e ficar silenciosamente furioso”, conclui.