No contexto da guerra que se desenvolve atualmente na Ucrânia, muitos são os que têm reclamado a criação de um tribunal especial para julgar os crimes de guerra nela cometidos e o crime de agressão.
Entre eles, o presidente desse país, a presidente da União Europeia (EU) e uma maioria significativa de deputados do Parlamento Europeu.
A criação do Tribunal Penal Internacional (TPI) teve como um dos seus fundamentos essenciais a necessidade de estabelecer um Tribunal Internacional independente, permanente e preestabelecido em relação ao cometimento de crimes para os quais se lhe atribuía competência de investigação e julgamento.
Pretendia-se, desse modo, responder à polémica já antiga resultante da experiência do Tribunal de Nuremberga, que julgou os responsáveis nazis pelos crime por eles cometidos contra a humanidade.
Com efeito, nem aquele tribunal, nem os crimes pelos quais os responsáveis nazis foram julgados, tinham sido predeterminados em tratado internacional anterior.
Tratou-se de um tribunal das potências vencedoras para julgar os crimes dos vencidos.
Antes da criação do TPI, havia sido instituído, também, em 1993, o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Jugoslávia, que, precisamente, foi alvo das críticas já antes avançadas em relação ao Tribunal de Nuremberga.
Críticas que se dirigiram, sobretudo, à criação de uma jurisdição posterior ao cometimento dos crimes a serem investigados e julgados e, ainda, por causa da sua composição e, consequentemente, da sua independência.
Por tal razão e, precisamente para contrariar tais críticas, ficou estabelecido que a jurisdição do futuro TPI só se exerceria relativamente aos crimes definidos por lei anterior e que sucedessem depois da data da sua criação por via de tratado internacional que fosse aceite e obrigasse o país em que tais crimes ocorressem.
O TPI só julgaria, portanto, crimes pré-definidos e ocorridos a partir 1 de julho de 2002, data que marcou o início oficial da sua atividade.
Estes princípios que enformaram a jurisdição do TPI, estavam já embrionariamente desenhados na Carta das Nações Unidas, no seu Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem do Conselho da Europa.
Eles foram, porém, mais bem esclarecidos e redesenhados, depois, na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia e constituem, assim, pedras angulares da cultura de defesa dos direitos dos cidadãos dos países que integram esta organização.
A defesa dos direitos fundamentais está, com efeito, totalmente relacionada com a prevalência do Estado de Direito.
Os conceitos de Democracia, Estado de Direito e cidadania estão, assim, intimamente ligados entre si.
Neles desempenha um relevante papel o princípio da independência do poder judicial, o que implica, necessariamente, também, o de uma jurisdição normal e preexistente ao cometimento dos crimes que vai julgar.
À margem dos direitos consagrados nos tratados internacionais e nas leis constitucionais nacionais, que, sucessivamente, organizam o exercício e o controlo do poder público de qualquer país, não se pode, propriamente, falar direitos de cidadania e, menos ainda, da prevalência de direitos humanos.
Nesta medida, todos os novos instrumentos nacionais e internacionais que se destinam a aperfeiçoar e, progressivamente, melhor definir os conceitos constantes dos textos legais e tratados anteriores devem inspirar a política interna e externa dos Estados e organizações de Estados que os subscreveram.
Não parece, pois, curial que Estados e organizações de Estados que adotaram para si tais princípios possam propor, para outros que as não integram, nem subscreveram os documentos que legitimam a subordinação a eles, soluções político-jurídicas que não querem para si.
No Capítulo VI – Justiça – artigo 47.º a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais da União Europeia estabelece:
«Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei.»
Este texto avança, assim, um pouco relativamente a algumas das soluções contidas em outros documentos internacionais relativos à proteção dos direitos humanos e das garantias e direitos fundamentais dos cidadãos.
Com efeito, a Carta Europeia, em vez de dizer que assiste a uma pessoa o direito ser julgada por um tribunal independente e estabelecido por lei, diz – mais claramente agora – que lhe assiste o direito de ser julgada por um tribunal previamente estabelecido por lei.
No fundo, clarifica apenas o que outros documentos implicitamente já pretendiam dizer.
Mesmo assim, tal esclarecimento e acrescento – refiro-me à palavra previamente – alarga e elucida a garantia que os documentos anteriores se propunham já consagrar.
Ele tem, por isso, um significado importante, pois resulta das experiências históricas entretanto ocorridas com outros tribunais do mesmo tipo, e traduz as lições delas adquiridas.
Este comando – que tem, pois, subentendida uma diretriz de natureza civilizacional – não deve, assim, ser pensado apenas como uma mais valia obtida, exclusivamente, para benefício dos cidadãos que integram e vivem nos Estados-Membro da UE.
Como princípio civilizacional comummente assumido pelos países que integram a UE, ele deve orientar, necessariamente, a política desta organização nas propostas que faz para si e para valerem em outros Estados que a ela não pertencem.
Só assim, em coerência, se justifica, moral e politicamente, a atuação internacional da UE na defesa dos direitos humanos e das liberdades e garantias dos cidadãos.