Nova Iorque. Os espíritos do lugar

Nova Iorque. Os espíritos do lugar


O mais recente romance de Colson Whitehead serve-nos de ponto de partida para uma viagem literária por Nova Iorque e os seus escritores.


A cada leitor seus métodos. No que concerne a viagens, há quem goste de levantar o livro entre os olhos e as imagens visitadas, como um filtro, preferindo uma visita à transparência das páginas ao contacto directo com a substância dos factos. A estes talvez não desagradasse, por exemplo, ler o Livro do Desassossego na rua dos Douradores (na qual também há universo, como escreveu o próprio Bernardo Soares, que apreciava sobretudo o pasmo da viagem cerebral). Mas não é obrigatório usar a ficção como forma de aceder aos sítios, ou usufruí-la sempre como uma espécie de turismo.  Por cada leitor incomodado a fazer a destrinça entre narrativa e realidade, outro haverá menos atreito a testar por comparações o espírito dos lugares. Viajantes há que mesmo tendo pesquisado por equivalente literários, e carregado os tomos pelos labirintos propostos nas agências, fiados em esperas de voos e outras armadilhas de enlear passeantes, acabam encantados com o país ele mesmo, e desistem de atacar in loco os livros elegidos, deixando as palavras alheias para o regresso, a fim de as consumirem no fogo mais lento da memória. A bagagem existe sempre, porém, e cidades como Nova Iorque não se deixam ignorar.

Manhattan clarifica-se ao ritmo com que se desce as avenidas perfuradas, parando para girar a cabeça em cada cruzamento, para um lado e para o outro nos meridianos, à procura do mistério numerado das transversais. Para lá da saturação de referências emanada dos arranha-céus periodicamente destruídos por gorilas ou lagartos em mutação nuclear, e dos ecrãs macrossómicos que consomem as pupilas, nos limites do que se apresenta como cortina primeira aos olhos do abismado visitante, talvez se entenda ainda uma gradação nessa descida desde os algarismos superiores da grelha, a cidade alta, a Uptwon dos gangues e das raças, até ao estreito esplendor de Wall Street, onde a sístole do lucro branco se contrai, como pode, em volta do buraco imaginável das Torres Gémeas. É daí que se chega às larguezas de Battery Park onde, costas com costas com os arranha-céus do dinheiro, se vê melhor a estátua de todas as liberdades e de todas as migrações, pequena ao longe no átrio do rio.

Comecemos por cima e pelo mapeamento proposto por Colson Whitehead no seu último romance, Ao ritmo do Harlem (Alfaguara, 2022). Estão lá o teatro Apollo, Washington Heights, as vistas do Hudson, o túmulo de Grant e muitos dos nós geográficos significativos para quem queira calcorrear o topo da península. Constam os vários tempos da cidade, as quedas e ressurreições da arquitectura, e até uma premonição (a cronologia deixa o protagonista parado no sítio onde acabará por nascer o World Trade Center). Desenhado no esqueleto de três histórias semi-policiais, que cobrem, em arcos temporais não sobrepostos, os inícios da década de sessenta do século passado, o enredo transporta-se sobre o dorso de Ray Carney, filho de um pequeno criminoso da zona, comerciante honrado de mobiliário e revendedor de jóias desviadas, entre outros bens de alto consumo. O começo mostra-nos a família pronta para gravar um lugar seu no bairro duro, unidos na defesa de um tráfico legítimo e tentando acarinhar uma distância segura com os muitos meliantes do lugar e outras forças vivas da cidade. Um primo do protagonista transita nesse lado escuro e fornece o laço de sangue que arrasta Carney para o meio de esquemas imprevisíveis, catapultando-o para o centro do poder negro do bairro, enredando-o nos meandros do pequeno capitalismo e obrigando-o a descer em grandes caminhadas pelas paralelas ricas junto ao Central Park, ou pelo Diamond District, fulcro da cidade baixa e denominação pragmática para qualquer ourives paralelo. O que parece surgir primeiro como defesa de um homem bom frente às regras do bairro agreste onde cresceu, passa a incluir assassínios inevitáveis, chantagens, vinganças e assaltos à mão armada.  Estão envolvidos gangsters do tipo clássico, filhos-família caídos na droga e o grande espectáculo da corrupção de largo espectro. Surge também, porque o que nos parece novo é quase sempre a repetição de um arquétipo, o terramoto social do racismo, da brutalidade policial e dos motins que impregnam a memória mais recente do país. 

Parte significativa da vida mental do personagem, o lado mais interessante da história, reside na oscilação entre uma honestidade exigida como ponto de consciência e a necessidade de transgressão, que às tantas não é só um modo de ajeitar o salário (porque a vida no Harlem de sessenta não é fácil para os honestos e suster uma família é um acto de malabarismo) mas também uma vénia de viés ao espírito do lugar e à história dos próprios genes (na ideia, ao jeito de um Robin dos Bosques, de que a revolta social não se processa só pela via das boas intenções). Mas talvez o jogo, demasiado óbvio, acabe por torcer o nariz do leitor menos benévolo. Em entrevista recente, diz-nos Colson que lhe interessa a arte, e não a política. Parecem intenções boas. De bons instintos, porém, está a literatura cheia, e não é verdade que eles se cumpram sempre. Com as suas vitórias, este não deixa de ser um romance em que o discurso social parece ter mais força que a vontade de enlaçar o outro na viagem narrativa, tornando a ficção o pretexto para anunciar verdades que, faltando ser dobradas pelo poder da escrita, não chegam senão a soar como breves lugares-comuns, produtos de um vento local, que logo amaina. Pode amuar, o leitor deste romance, quando perceber que o afã de seguir os personagens, essa energia sagrada, sofre por ser torcido para o fim concreto da correcção social, e que as histórias são pretextos apenas de uma estratégia, aliás louvável nos seus motivos, de deixar descrito um tempo social e as vicissitudes de um instante político. Mas talvez ganhe em compará-la, esta incursão, com outras feitas em território anexo, enveredando no percurso que ora lhe propomos, variado no tempo, mas seguindo, voltas dadas, os sulcos longitudinais das avenidas.

O meio da cidade, a dos teatros sonhados, das espículas art déco, das ressoantes estações de abóbadas, a Midtown do gigantesco parque (uma catedral da natureza afundada numa cidade que não pára de erguer-se, como diria Jacqueline Roux, personagem efémera no que a seguir contamos), é talvez onde o turista irá encontrar as vibrações mais espessas, ricochetando no porão comum à memória do europeu informado. É precisamente esse estrondo que E. L. Doctorow opta, sabiamente, por nos ocultar, em Homer e Langley (Porto Editora, 2013). Romance baseado em biografias verdadeiras, apresenta-nos dois irmãos, um cego (Homer) e outro irremediavelmente transtornado pelos gases da primeira guerra mundial (Langley), que se fortificam pouco a pouco contra as correntes do tempo, num apartamento herdado algures na fronteira da quinta avenida com o Central Park. Homer aprende as regras de uma escuridão progressiva e apaixona-se sucessivamente por mulheres que não pode observar, incluindo a citada Jacqueline Roux , por momentos executante de uma visão possível. Langley, para quem a psiquiatria hodierna saberia sem dificuldades arranjar etiqueta certa, é acumulador de jornais, de entre muitos outros despojos, e dedica-se a coleccionar padrões para compor a edição eterna, constituída por notícias imutáveis e infalíveis, que faça supérfluas as actualizações e suspenda, de uma vez por todas, qualquer cronologia. Equivalendo todos os acontecimentos a um que os explique cabalmente, e todos os exemplos à sua origem, reunindo num único sítio (o apartamento) todos os elementos do universo (incluindo, por exemplo, um automóvel montado com todas as peças no interior de uma sala de jantar), os irmãos reduzem o tempo ao seu esqueleto e as variações da vida a curtos pormenores estatísticos. Alguns diriam que a ficção não é tanto uma técnica para caçar verdades como uma ferramenta para enlaçar as suas reverberações. Podendo não ser verdadeira em todos os casos, a elucubração será ao menos albarda certa para o livro em questão. Mais que uma teoria sobre a natureza cíclica e por isso estática do tempo, Homer e Langley constitui-se como um manual sobre ecos: o que lemos é sobretudo uma técnica para amortecer, com perícia, os sinais que batem à porta fechada dos irmãos. Os eventos são como ondas que viessem anunciar, sem nenhum efeito dissuasor, as convulsões da história: guerras mundiais, conflitos caseiros, todos os efeitos da decadência arquitectural e física e todas as transformações culturais (às tantas a casa é ocupada por um bando de hippies no qual, sob chave, parece surgir Robert Crumb, o desenhador genial e lúbrico). Doctorow é hábil em condensar estas matérias (a temível avalanche da História), lateralizando-lhe os efeitos e filtrando-os pelo interior do espírito destes dois irmãos, que atravessam a chegada da televisão e as imagens do homem na lua e da guerra do Vietnam com a mesma ataraxia filosófica com que se defendem  das incursões de inspectores, jornalistas e arautos do crime organizado, e dos processos movidos pelas companhias do gás, luz e outros vampiros do capitalismo: de mãos dadas, por assim dizer, e sabendo que não vale a pena perder tempo com as armadilhas do tempo.

Mas prossigamos para sul. Quando Ray Carney, o bom malandro de Whitehead, se encontra necessitado de escoar a carga ilícita que lhe vendem a coberto da loja de móveis, no Harlem original, é descendo que resolve a falta, para se encontrar com o receptor dos bens roubados, no coração financeiro da cidade. O livro de Colson acaba antes, mas o leitor sabe (é impossível esquecê-lo) que é na ponta de Manhattan, na cidade baixa do lucro e da especulação, que hão-de nascer os alvos mais tristes da época e o contra-símbolo de uma visão civilizacional. É de ocidente e civilização, medo escondido e paranóia capitalista, que nos tem falado Don Delillo, que no último romance, O Silêncio (Relógio D’Água, 2020) escrevia sobre um mundo repentinamente sem energia nem comunicação ou, em Ruído Branco (Sextante Editora, 2010), sobre os efeitos de uma catástrofe ambiental no disfuncionamento habitual da família americana. Em O homem em queda (Sextante Editora, 2007), DeLillo usa uma imagem tirada em directo da catástrofe (com os múltiplos sentidos, decadentistas ou gravitacionais, que lhe quisermos dar) para enfrentar o ataque às Torres Gémeas. Avançando no seu estilo fantasmático, incisivo e distante, estilhaça com clamor a psique de umas quantas personagens: Keith, um advogado que trabalha numa das torres e sobrevive ao atentado, Lianne, terapeuta de doentes de Alzheimer, a ex-mulher que o recebe de volta depois do ataque, e o filho de ambos, observador, doravante, de todos os aviões que passem no espaço aéreo da cidade. Todos tentam refazer o fio cortado abruptamente pela catástrofe, mas nenhum parece conseguir lidar com as tremendas consequências, errando sem acerto numa memória cujo peso é impossível fixar. Essa incerteza transmite-se ao leitor, mas parece haver dificuldade em acertar no tom emocional correcto para lidar com pesadelos tão concretos:  é aqui que talvez falhe o génio de DeLillo, ou fique demonstrada alguma dificuldade em abordar as quedas grandes em quem se especializou em esmiuçar as pequenas, ampliando-as. Por isso talvez ganhemos, leitor-turista, em passar de lado, tentando contornar o pulsar dos vórtices que hoje ocupam os fundamentos das torres. 

Atravessada a ponte, levantado até às alturas de Brooklyn e virado de costas para a linha impossível de Manhattan (de contrário talvez fosse impossível abraçar a ilusão que sugerimos), talvez o leitor se consiga sentir menos americano, recentrado em escala europeia. Brooklyn Heights, de rua estreitas e casas baixas, é um território calmo para escritores, onde se faz bom convívio com os fantasmas de Walt Whitman, Truman Capote e Thomas Wolfe. Paul Auster constará do censo habitacional, mesmo sendo o mais europeu dos escritores americanos. Apreciam-no melhor no velho continente dos labirintos que na arquitectura vertical americana, sendo mais provável, diz o próprio, ser reconhecido em Paris, que entre as casas de tijolo castanho onde montou residência. A Trilogia de Nova Iorque, o primeiro romance de Auster em nome próprio (Edições Asa, 1999) é, como o de Colson, um livro sobre crimes e investigações, mesmo que os resultados devam mais a Borges ou a Beckett que ao vitorioso realismo americano. Em Cidade de Vidro, Quinn, um escritor de livros policiais, é confundido, numa troca de linhas telefónicas, com um detective chamado Paul Auster e convencido por uma mulher sedutora e misteriosa (tão fatal como lhe compete) a vigiar um académico enlouquecido, preso na rede de um delírio linguístico. Se o enredo lhe parece estranho, ou confusão deste que lho descreve, atente o leitor numa das primeiras frases do livro, onde o autor confirma, com precisão, ao que vem: “Nova Yorque era um espaço inesgotável, um labirinto de passos intermináveis, e por mais que caminhasse ou conhecesse os seus bairros e ruas, deixava-o sempre com a sensação de estar perdido. Perdido não só na cidade, mas no interior de si próprio. De cada vez que fazia uma caminhada, sentia como se estivesse a deixar-se para trás, e ao entregar-se ao movimento das ruas, ao reduzir-se a um olho que vê, conseguia escapar à obrigação de pensar, e isto, mais do que qualquer coisa, trazia-lhe uma certa paz, um salutar vazio interior”.  Cumprindo a expectativa, grande parte do percurso de Quinn acaba gasto a perseguir o presumível criminoso através de Manhattan, em percursos meticulosos que ao fim percebe desenharem trajectos definidos. Lidas de cima, com os olhos divinos que existem em cada utilizador de um mapa (um turista, por exemplo), as caminhadas revelam as letras de uma frase estranha: A Torre de Babel.

Esta ideia de leitura como desenredamento de um local geográfico, e do alheamento do leitor face ao mundo externo como sinal de concentração dirigida a um mistério que é sempre policial (todo o enredo tem um móbil e todo o leitor é, enquanto leitor, um morto-vivo ou, para inverter Pessoa, um vivo adiado pela leitura) prolonga-se na novela seguinte, decorrida em Brooklyn e tendo como título, muito acertadamente, a palavra fantasmas (ou, se quisermos outra tradução, espíritos).  Um investigador profissional é encarregue de vigiar os movimentos de um homem que parece não fazer outra coisa que sentar-se todos os dias a uma mesa junto à janela, a escrever num caderno cujas palavra o aumento dos binóculos detectivescos nunca consegue tornar legível. Demorada a tarefa a um intervalo imprevisível, afastada a possibilidade de estimar um fim ou retirar da espera (da leitura) mais do que uma imagem imutável e nunca esclarecedora, misturados às tantas os papéis (quem é observado parece não ter outra função que essa mesma, contratado também ele para contracenar de modo fixo com o investigador) a narrativa enrodilha-se num esgotamento de sentido totalmente moderno e pouco conciliador dos nossos males existenciais. Em O quarto fechado à chave, um escritor falhado, remetido a recensões, é confrontado com o pedido de um amigo de infância, que tendo resolvido desaparecer lhe entrega, por mão da esposa e mãe do seu único filho, os cadernos que contém a sua obra inédita. O escritor de recensões publica-a, com muito sucesso, casa com a mulher do amigo, passa a viver dos lucros e adopta como sua a criança – as coisas não podiam correr pior. A leitura do outro enquanto leitura de si mesmo, a impenetrabilidade desse(s) segredo(s), e a fragilidade do jogo identitário, constitui o cerne desta narrativa de substituição, que deve tudo aos romances de duplos, e mostra, pela multiplicação, que o medo de morrermos passa muito pelo receio de sermos substituídos por uma versão mais útil. Reunindo as peças dos anteriores, com o mesmo brilhantismo, o conto não derrota, porém, o principal inimigo desta trilogia, que é uma espécie de indecisão em nos mostrar, a nós leitores, a moral ambiente da fábula, que se estende numa profusão de significados umas vezes luminosa, mas outras pouco verosímil. Há um gosto pelo floreado narrativo e uma obsessão por espelhos que tende a deitar ao chão, arfante e de mãos agarradas à cabeça, o tipo de leitor que não consiga viver sem reunir, a cada momento, cada um dos fios da história.

Provam estes livros, se fosse preciso prová-lo, que não faltam espíritos nos lugares. Cada turista visitá-los-á a seu modo, sendo senhor até de os ignorar por completo. Mas o leitor ganha em ouvir-lhes os murmúrios, até porque ampliam as vistas, oferecendo, por cada autor, uma viagem diferente. Se em Doctorow a cidade é essa explosão contínua de realidades sucessivas e dolorosas, que é necessário manter ao largo, e em DeLillo a oportunidade de inverter o cenário, aproveitando os estilhaços para espelhar os fragmentos dos personagens, Auster apresenta Nova Iorque como um labirinto de decifrações detectivescas e actualização permanente de um símbolo indecifrável.  Em Ao ritmo de Harlem, a cidade é um joguete do tempo, um palimpsesto nunca completado, onde a história rasura uma e outa vez o desenho humano, de umas vezes expondo a risibilidade dos seus sonhos, de outras concedendo-lhe a graça da vingança. Exercício de reconstrução que Colson pretende prosseguir, pelo menos a julgar pelas pistas que nos deixa.