Unicórnios à solta


Cá dentro do nosso retangulozinho, vamo-nos entretendo com os pequenos autoritarismos de governos sem visão, com a média e pequena corrupção de responsáveis políticos vários, com números de variedades acerca das relações entre o este e o aquele que são muito importantes e tal, enquanto os nossos filhos emigram, porque não encontram aqui um caminho…


Um historiador inglês, de seu nome Edward Wilson-Lee escreveu um excelente livro chamado A History of Water (Uma História da Água) no qual relata o século de ouro português, o fantástico século XVI, através das vidas paralelas de Damião de Goes e de Luís de Camões. 

A páginas tantas refere um facto curiosíssimo, anotado por Damião de Goes no Livro das Ilhas, no qual Damião foi contando os feitos das aventuras ultramarinas portuguesas. Anota ele que foi promulgado em 1461 um édito real que visava proibir aos cidadãos particulares o comércio de pimenta, gatos selvagens e unicórnios… Quanta capacidade de ver o futuro!

Nada que espantar: em 1461 reinava em Portugal D. João II, que ficou para a história como “o príncipe perfeito”, exemplo do bom monarca lusitano, o homem que de forma paciente, bem assessorada e sapiente, lançou as verdadeiras bases logísticas e científicas da imensa aventura dos descobrimentos que chegaram à fruição já com o seu sucessor, D. Manuel (o Venturoso), com a “descoberta” do caminho marítimo para a Índia e a descoberta, dois anos depois, em 1500, do Brasil. 

Em boa verdade, o que foi feito entre 1415 (conquista de Ceuta, em Marrocos) e 1498 com a chegada de Vasco da Gama a Calecute na Índia, é a maior, mais científica e mais consistente aventura nacional de todos os tempos. Era preciso muita visão, muita persistência e muita consistência de propósitos para sustentar ao longo de mais de 80 anos uma visão tão clara daquilo que era o interesse nacional, uma visão de expansão da “fé e do império” baseada não em demandas aventureiras – como a de Colombo ao convencer os Reis Católicos de Espanha de que chegaria ao oriente indo para ocidente e embatendo acidentalmente nas Caraíbas – mas no estudo aturado da geografia, das correntes comerciais do mundo islâmico, nos mapas antigos que os portugueses iam desbravando, na astronomia, na matemática, na oceanografia, na medicina (essencial para manter as tripulações minimamente saudáveis em longuíssimas travessias marítimas) na espionagem, de que homens como Pero da Covilhã e Afonso de Paiva se tornaram expoentes máximos, ao investigar e relatar em longas viagens no oriente as rotas comerciais do Índico. 

A gesta dos descobrimentos foi uma aventura, sim, mas uma aventura científica propulsada e financiada pela vontade do estado ao serviço de uma visão de Portugal no mundo que não teve paralelo na época nem tem paralelo no nosso mundo português moderno. 

Regressados a casa meio milénio depois, reduzidos a um retângulo pequeno à escala europeia, minúsculo à escala do mundo e à memória que o mundo guarda de nós, encontramos guarida no extraordinário projeto de União Europeia que integramos em 1986 e que temos acompanhado, como sabemos e podemos. 

Infelizmente, Portugal que se habituou a viver de circunstâncias externas, integrou na União Europeia um projeto e uma visão que não eram nossos, aceitamos enquanto de “lá” nos vem dinheiro e recursos, mas de cujo coração nos mantemos alheados, como se o dinheiro, mas também os regulamentos europeus, caíssem do céu, por munificência ou arbítrio divinos. 

Dá por vezes a impressão, nestes dias e anos que correm, que a nossa visão do mundo é a de obter o máximo de dinheiro da União para confortar o nosso dia a dia e, uma vez por outra, exaltarmo-nos em frente à televisão com as façanhas da nossa seleção nacional de futebol. Do resto, tratam os outros, seja lá quem forem. 

Cá dentro do nosso retangulozinho, vamo-nos entretendo com os pequenos autoritarismos de governos sem visão, com a média e pequena corrupção de responsáveis políticos vários, com números de variedades acerca das relações entre o este e o aquele que são muito importantes e tal, enquanto os nossos filhos emigram, porque não encontram aqui um caminho que lhes faça sonhar com melhor futuro.

Um amigo e ex-colega de Governo, o antigo ministro da Saúde Luís Filipe Pereira, escreveu há dias um artigo aterrador no Nascer do SOL, em que enuncia o estado abúlico e mesmo deprimente do nosso (inexistente) crescimento económico. 

Dou apenas alguns exemplos dos numerosos factos relatados nesse artigo: “Em 2002 Portugal era o 15.º país na Europa com um PIB superior a 85% da média da EU e caiu para a 21.ª posição em 2021 (Eurostat);

Mais recentemente, em 2015 (início do Governo da “geringonça”) o PIB p/c de Portugal era de 78% da média da EU sendo, em 2021 de 74% (Eurostat). Neste mesmo ano Portugal estava acima de 10 países da EU, em termos de PIB p/c., e em 2021 é apenas superior a 6 outros Estados Membros (Eurostat);

– Dados relativos a 2021 demonstram que Portugal se encontrava no 8.º lugar, entre os países europeus que registam maior risco de pobreza e de exclusão social com 22,4% da população afetada (Eurostat). São cerca de 2,3 milhões de portugueses (dos quais, estima-se, cerca de 2/3 com emprego);

– Dados recentes publicados na Comunicação Social fundamentam que sem transferência sociais, a pobreza atingiria cerca de metade da população (mesmo aquela possuindo um emprego)”.

Mas há quem, perante este cenário que nos deveria fazer pensar muito a sério no país que temos construído ao longo destes muitos anos, se entretenha a ficcionar grandes feitos do domínio da mais doce fantasia e pretenda constituir em Portugal “fábricas” de unicórnios (empresas de novas tecnologias que valham rapidamente muito dinheiro). 

Enquanto que as pequenas e médias empresas, muitas delas hiperdinâmicas e inovadoras, são massacradas com impostos altíssimos, uma burocracia regulamentar kafkiana e custos de energia e de contexto absurdos, há quem se entretenha nas web summits da moda a anunciar os silicon valleys de Chelas (só se for…). 

Enquanto que os ditos unicórnios à solta alimentam uma versão fantasiosa e para crianças da economia portuguesa, no mundo real, as nossas maiores empresas foram ou desmanteladas ou vendidas a estrangeiros que levaram daqui para fora as decisões estratégicas sobre o nosso futuro. 

Como diria Lenine, “que fazer?”.

Bom, talvez possamos começar por abrir os olhos e ver com olhos de ver o que aqui se passa e o que se passa nesse vasto mundo que nos rodeia, deixar de ser complacentes com erros evidentes e ideias absurdas, falta de visão para Portugal e falta de vontade reformista, talvez deixar de aturar os arbítrios e autoritarismos de governos de ocasião e deixar de aturar o fiasco permanente em que a nossa Justiça se atola. 

A seguir, podemos “empoderar-nos”, como agora se diz, e exigir aos nossos governos que deixem lá a caça aos gambuzinos do hidrogénio verde ou aos unicórnios, e façam as reformas que permitam à sociedade e às empresas portuguesas prosperar e criar riqueza a sério, daquela que faz um povo progredir e ficar mais rico, mais sólido e mais democrático, porque não pode haver verdadeira democracia, quando metade da população vive daquilo que o Estado entende dispensar-lhe, e a outra metade labuta de sol a sol apenas para não cair nessa triste dependência. 
Já não era mau, para começar.

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, 
Subscritor do “Manifesto por uma Democracia de Qualidade”

Unicórnios à solta


Cá dentro do nosso retangulozinho, vamo-nos entretendo com os pequenos autoritarismos de governos sem visão, com a média e pequena corrupção de responsáveis políticos vários, com números de variedades acerca das relações entre o este e o aquele que são muito importantes e tal, enquanto os nossos filhos emigram, porque não encontram aqui um caminho…


Um historiador inglês, de seu nome Edward Wilson-Lee escreveu um excelente livro chamado A History of Water (Uma História da Água) no qual relata o século de ouro português, o fantástico século XVI, através das vidas paralelas de Damião de Goes e de Luís de Camões. 

A páginas tantas refere um facto curiosíssimo, anotado por Damião de Goes no Livro das Ilhas, no qual Damião foi contando os feitos das aventuras ultramarinas portuguesas. Anota ele que foi promulgado em 1461 um édito real que visava proibir aos cidadãos particulares o comércio de pimenta, gatos selvagens e unicórnios… Quanta capacidade de ver o futuro!

Nada que espantar: em 1461 reinava em Portugal D. João II, que ficou para a história como “o príncipe perfeito”, exemplo do bom monarca lusitano, o homem que de forma paciente, bem assessorada e sapiente, lançou as verdadeiras bases logísticas e científicas da imensa aventura dos descobrimentos que chegaram à fruição já com o seu sucessor, D. Manuel (o Venturoso), com a “descoberta” do caminho marítimo para a Índia e a descoberta, dois anos depois, em 1500, do Brasil. 

Em boa verdade, o que foi feito entre 1415 (conquista de Ceuta, em Marrocos) e 1498 com a chegada de Vasco da Gama a Calecute na Índia, é a maior, mais científica e mais consistente aventura nacional de todos os tempos. Era preciso muita visão, muita persistência e muita consistência de propósitos para sustentar ao longo de mais de 80 anos uma visão tão clara daquilo que era o interesse nacional, uma visão de expansão da “fé e do império” baseada não em demandas aventureiras – como a de Colombo ao convencer os Reis Católicos de Espanha de que chegaria ao oriente indo para ocidente e embatendo acidentalmente nas Caraíbas – mas no estudo aturado da geografia, das correntes comerciais do mundo islâmico, nos mapas antigos que os portugueses iam desbravando, na astronomia, na matemática, na oceanografia, na medicina (essencial para manter as tripulações minimamente saudáveis em longuíssimas travessias marítimas) na espionagem, de que homens como Pero da Covilhã e Afonso de Paiva se tornaram expoentes máximos, ao investigar e relatar em longas viagens no oriente as rotas comerciais do Índico. 

A gesta dos descobrimentos foi uma aventura, sim, mas uma aventura científica propulsada e financiada pela vontade do estado ao serviço de uma visão de Portugal no mundo que não teve paralelo na época nem tem paralelo no nosso mundo português moderno. 

Regressados a casa meio milénio depois, reduzidos a um retângulo pequeno à escala europeia, minúsculo à escala do mundo e à memória que o mundo guarda de nós, encontramos guarida no extraordinário projeto de União Europeia que integramos em 1986 e que temos acompanhado, como sabemos e podemos. 

Infelizmente, Portugal que se habituou a viver de circunstâncias externas, integrou na União Europeia um projeto e uma visão que não eram nossos, aceitamos enquanto de “lá” nos vem dinheiro e recursos, mas de cujo coração nos mantemos alheados, como se o dinheiro, mas também os regulamentos europeus, caíssem do céu, por munificência ou arbítrio divinos. 

Dá por vezes a impressão, nestes dias e anos que correm, que a nossa visão do mundo é a de obter o máximo de dinheiro da União para confortar o nosso dia a dia e, uma vez por outra, exaltarmo-nos em frente à televisão com as façanhas da nossa seleção nacional de futebol. Do resto, tratam os outros, seja lá quem forem. 

Cá dentro do nosso retangulozinho, vamo-nos entretendo com os pequenos autoritarismos de governos sem visão, com a média e pequena corrupção de responsáveis políticos vários, com números de variedades acerca das relações entre o este e o aquele que são muito importantes e tal, enquanto os nossos filhos emigram, porque não encontram aqui um caminho que lhes faça sonhar com melhor futuro.

Um amigo e ex-colega de Governo, o antigo ministro da Saúde Luís Filipe Pereira, escreveu há dias um artigo aterrador no Nascer do SOL, em que enuncia o estado abúlico e mesmo deprimente do nosso (inexistente) crescimento económico. 

Dou apenas alguns exemplos dos numerosos factos relatados nesse artigo: “Em 2002 Portugal era o 15.º país na Europa com um PIB superior a 85% da média da EU e caiu para a 21.ª posição em 2021 (Eurostat);

Mais recentemente, em 2015 (início do Governo da “geringonça”) o PIB p/c de Portugal era de 78% da média da EU sendo, em 2021 de 74% (Eurostat). Neste mesmo ano Portugal estava acima de 10 países da EU, em termos de PIB p/c., e em 2021 é apenas superior a 6 outros Estados Membros (Eurostat);

– Dados relativos a 2021 demonstram que Portugal se encontrava no 8.º lugar, entre os países europeus que registam maior risco de pobreza e de exclusão social com 22,4% da população afetada (Eurostat). São cerca de 2,3 milhões de portugueses (dos quais, estima-se, cerca de 2/3 com emprego);

– Dados recentes publicados na Comunicação Social fundamentam que sem transferência sociais, a pobreza atingiria cerca de metade da população (mesmo aquela possuindo um emprego)”.

Mas há quem, perante este cenário que nos deveria fazer pensar muito a sério no país que temos construído ao longo destes muitos anos, se entretenha a ficcionar grandes feitos do domínio da mais doce fantasia e pretenda constituir em Portugal “fábricas” de unicórnios (empresas de novas tecnologias que valham rapidamente muito dinheiro). 

Enquanto que as pequenas e médias empresas, muitas delas hiperdinâmicas e inovadoras, são massacradas com impostos altíssimos, uma burocracia regulamentar kafkiana e custos de energia e de contexto absurdos, há quem se entretenha nas web summits da moda a anunciar os silicon valleys de Chelas (só se for…). 

Enquanto que os ditos unicórnios à solta alimentam uma versão fantasiosa e para crianças da economia portuguesa, no mundo real, as nossas maiores empresas foram ou desmanteladas ou vendidas a estrangeiros que levaram daqui para fora as decisões estratégicas sobre o nosso futuro. 

Como diria Lenine, “que fazer?”.

Bom, talvez possamos começar por abrir os olhos e ver com olhos de ver o que aqui se passa e o que se passa nesse vasto mundo que nos rodeia, deixar de ser complacentes com erros evidentes e ideias absurdas, falta de visão para Portugal e falta de vontade reformista, talvez deixar de aturar os arbítrios e autoritarismos de governos de ocasião e deixar de aturar o fiasco permanente em que a nossa Justiça se atola. 

A seguir, podemos “empoderar-nos”, como agora se diz, e exigir aos nossos governos que deixem lá a caça aos gambuzinos do hidrogénio verde ou aos unicórnios, e façam as reformas que permitam à sociedade e às empresas portuguesas prosperar e criar riqueza a sério, daquela que faz um povo progredir e ficar mais rico, mais sólido e mais democrático, porque não pode haver verdadeira democracia, quando metade da população vive daquilo que o Estado entende dispensar-lhe, e a outra metade labuta de sol a sol apenas para não cair nessa triste dependência. 
Já não era mau, para começar.

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, 
Subscritor do “Manifesto por uma Democracia de Qualidade”