De tanto procurar explorar as emoções do telespectador acaba por provocar o embotamento dos sentidos. Já para os europeus de Leste a guerra é uma realidade fisicamente próxima e vista como podendo rapidamente atravessar as fronteiras dos respectivos Estados, que também são as fronteiras externas da União Europeia e da NATO.
A defesa dos europeus tem sido paga pelo contribuinte americano e assumida (descontado o intervalo trumpiano) pela liderança política dos EUA. A prática remonta à I guerra mundial, continuou na II, expandiu-se durante a guerra fria com a NATO e, graças aos esforços de Putin, continua pujante nos dias de hoje. Agora que o Reino Unido abandonou a União Europeia mais de 80% das capacidades de defesa da NATO têm origem fora do continente europeu (EUA, RU, Turquia e, numa dimensão mais reduzida, Canadá).
As capacidades de defesa não se medem apenas pela percentagem do PIB de cada Estado alocada às forças armadas. Os critérios contabilísticos permitem exercícios de criatividade (inclusão das pensões e reformas) que dizem muito pouco sobre a imediata utilidade prática de cada euro gasto em “defesa”. O número de militares é uma métrica ilusória: poderemos ter exércitos de burocratas sentados à secretária, com zero capacidade de combate e absoluta incapacidade de serem projectados e mantidos num teatro de guerra. Já a percentagem do orçamento de defesa gasta em novos equipamentos, bem como a respectiva sofisticação tecnológica, interoperabilidade com as forças dos Aliados e adequação à defesa dos interesses nacionais (e da capacidade de cumprir as missões que os concretizam) diz muito sobre as reais capacidades de defesa.
Nos maus resultados da aplicação destas métricas às capacidades de defesa não estamos sós. O actual retrato da Europa da defesa é desanimador. Com a preciosa ajuda de Putin gasta-se agora mais dinheiro, sobretudo a Leste, mas também na Alemanha (ainda que sob forma de promessa, já que os 100 000 milhões de novos euros para a defesa continuam por gastar) mas muito desse dinheiro está a pagar equipamento militar produzido nos EUA. O amigo americano assegura a defesa da Europa e não se cansa de explicar que o “buy american” é uma consequência inevitável desta amizade.
Não obstante este quadro, a última semana trouxe duas boas notícias. Alemanha e França entenderam-se, finalmente, para arrancar com o programa do avião de combate do futuro, associando Itália e Espanha. O último grande programa europeu nesta área, o A400M, não deixou saudades, pelo gigantismo das derrapagens orçamentais e dos atrasos na entrega do avião de transporte estratégico. Foi também anunciado o arranque do programa multinacional Eurodrone, juntando os mesmos 4 Estados, debaixo do chapéu da OCCAR (Organização Conjunta em Matéria de Armamento) o que abre a porta para a entrada no programa de Estados membros da UE, NATO e terceiros.
Os dois programas poderão devolver músculo às indústrias de defesa europeias (e nelas devem ser incluídas as portuguesas, para já como sub-contratantes, mas subindo na cadeia de valor acrescentado e diversificando a respectiva base tecnológica). Já a duração dos programas tardará a fornecer modernas capacidades de defesa às forças armadas europeias. O interregno será preenchido, mais uma vez, por equipamento dos EUA. Há atrasos que se pagam caro.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990