DOHA – Um dia escrevi: “Não morrerei em Buenos Aires/Não estarei morto quando forem seis horas da manhã/Não ouvirei a voz lavada a whiskies de Amelita Baltar/Nem o bandoneón enlouquecido e sofredor de Piazzolla/Não sentirei o cheiro ácido da romã/Que minha mãe descascava por minha preguiça/Não sentirei o sabor salgado do mar/Que vinha no vento à mistura com acordes de viola/E com um brilho de estrelas que enfeitiça”. Era um poema e ficou um livro.
Verdadeiramente não sei onde irei morrer, mas gostava de morrer longe do País Triste, desse País que é o que o mar não quer, como dizia Ruy Belo, que conheceu a morte e não conseguiu aguentar tamanha solidão. Eu procuro a solidão como um pedaço de mim mesmo. Não tarda regressarei a casa, se é que tenho casa, a minha casa é o lugar onde estou ou, por vezes, a pátria de Campos, a pátria de estar onde não estou. A minha casa agora é aqui, neste lugar onde me instalei, entre Mshreireb e Al Jabiba, no qual acordo com o cantar afinado do muezzin avisando que o sol nasceu antes de me virar para o outro lado e continuar a dormir. Tenho saudades de Buenos Aires, do Barrio de Las Barracas e dos tugúrios onde se baila o tango naquele ritmo sexual de vida ou morte. Sei que não morrerei em Buenos Aires mas, sinceramente, não sei porque não morrerei em Buenos Aires, parece-me um lugar tão bom para morrer como qualquer outro. Eu que não consigo livrar-me da morte que persegue sem descanso aqueles que amo, preciso de me agarrar a qualquer a qualquer coisa, nem que seja a uma frase. A frase de Jorge Luis Borges, que tinha sangue português de Torre de Moncorvo, e se tornou no mais labiríntico de todos os filósofos: “Cualquier destino, por largo y complicado que sea, consta en realidad de um solo momento – el momento en que el hombre sabe para siempre quién es!” Borges nasceu em Buenos Aires.
Amelita Baltar nasceu em Buenos Aires. Tem 82 anos. E promete: “Moriré en Buenos Aires, sera de madrugada/Guardaré mansamente las cosas de vivir/(…)Mi penúltimo whisky quedara sin beber/(…)Yo estar é muerta, en punto, cuando sean las seis”. Dizem que é de madrugada que morrem aqueles que sabem morrer. É madrugada em Doha. E eu espero.