Não saímos da cepa torta


Depois da pandemia, parece que nada passou da cepa torta e que tudo o que teve importância em determinada altura voltou a esvaziar-se na sua relevância, sendo novamente atropelado por este rolo compressor que é a nossa vida.


Durante o confinamento muito se especulava sobre como seriam os tempos a seguir à pandemia: se as pessoas iriam alterar os seus comportamentos face a novos valores que ressurgiram no isolamento, de que forma é que as empresas e as instituições se iriam organizar para se adaptarem aos novos desafios laborais e sociais, se a aprendizagem nas escolas sofreria uma revolução na sua ministração de conteúdos programáticos, se as relações humanas evoluiriam num sentido inédito, e muitas outras questões que se levantaram para além destas.

Olhando para trás, e para o último ano que passou, o sentimento de normalidade regressou aos nossos dias e, com a normalidade, todas as preocupações e arrelias que faziam parte do nosso quotidiano. Num contexto internacional inesperado e com uma crise económica associada, a nova normalidade foi retornando com as anteriores rotinas diárias a preencherem novamente os dias, conferindo-nos a sensação de que o pior estava a ficar para trás.

Mas não há como esquecer as inquietações e esperanças que se vivenciaram em tempos de isolamento. Lembram-se dos comentadores que versavam sobre a unidade tempo e de como este poderia vir a ter um valor diferente nas nossas vidas? Ou de como passámos a estar mais conscientes para os alertas sobre a degradação dos nossos ecossistemas, a partir do momento em que se avistaram animais selvagens a passear nas cidades e pássaros que não paravam de chilrear nas árvores dos jardins urbanos? Ou os bens que passámos a adjetivar de supérfluos e que já nos víamos a passar bem sem eles no pós-confinamento? E as promessas de mudanças de hábitos que fomos fazendo a nós próprios, à medida que íamos sendo tocados pelo isolamento e conforme as novas rotinas se iam entranhando nos dias que se sucediam, infindáveis?

Pois bem, hoje, parece que nada disso faz sentido e que pouco ou nada mudou. Como se tivéssemos tido uma oportunidade para fazer um “restart” no “modem” dos nossos dias e não a tivéssemos aproveitado.

O supérfluo e tudo o que é supérfluo continua entre nós. O nosso sistema educativo não mereceu nenhuma reflexão sobre o seu estado e sobre uma eventual adequação de outros métodos de ensino às novas técnicas disponíveis para a aprendizagem, em articulação com uma geração de crianças e jovens que estão desconectados com as estratégias curriculares do antigamente. Teria sido um bom momento para se repensar na Educação, desde o Ensino Básico ao Superior, depois da experiência que pais, educadores e alunos comungaram. Para quando uma escola que estimule os nossos jovens a descobrirem a sua vocação, abrindo vários caminhos e oportunidades até ao momento em que terminam o Secundário, e saibam o que querem fazer daí em diante? Ninguém acha estranho que cada vez mais jovens não saibam o que querem seguir nas licenciaturas? Como se fossem empurrados para um destino que não escolheram…

Muito se falou nas reuniões à distância, que tinham vindo para ficar na organização e no funcionamento empresarial e institucional. Mas será que se verificou uma tendência para eliminar as reuniões sem sentido, se incentivou os funcionários a não abrirem mails irrelevantes, ou se criaram espaços próprios para os colaboradores desenvolverem a sua criatividade e investirem em projetos com potencial real para a comunidade? Ou simplesmente se integrou mais uma nova forma de reunir, sem haver uma otimização do tempo, que se traduzisse em rentabilidade no trabalho?

No que se refere ao consumismo, a verdade é que só não consumimos mais porque estamos em crise e a inflação não dá tréguas, com os juros a subirem por aí acima. Depois da pandemia, continuamos a ser instigados a comprar coisas de que não precisamos, a fazer coisas que não apreciamos, com dinheiro que não temos, simplesmente para impressionar pessoas por quem não nutrimos afeto.

Mantém-se a valorização de que quem está muito ocupado é porque deve ser muito importante, em vez de glorificarmos os que entregam o seu tempo aos outros, sejam eles os filhos, os pais, um vizinho, desconhecidos, amigos. O tempo continua a ser mal empregue, de tal modo que há cada vez mais relatos de estudos realizados em doentes em fase terminal que quando questionados o que mudariam na sua vida, muitos referem que gostariam de ter passado mais tempo com “as suas pessoas”.

A vida tem um significado, apesar de todos os esforços que a nossa sociedade e governantes têm feito para desvalorizar o bem mais precioso e inviolável que nos é conferido no momento da conceção. A forma como vivemos a nossa vida, seja ela curta ou longa, também tem o seu significado e valor, e implica escolhas e decisões a cada segundo que passa. Depois da pandemia, parece que nada passou da cepa torta e que tudo o que teve importância em determinada altura, voltou a esvaziar-se na sua relevância, sendo novamente atropelado por este rolo compressor que é a nossa vida, aquela que escolhemos todos os dias, como se não houvesse alternativa.

 

Escreve quinzenalmente

Não saímos da cepa torta


Depois da pandemia, parece que nada passou da cepa torta e que tudo o que teve importância em determinada altura voltou a esvaziar-se na sua relevância, sendo novamente atropelado por este rolo compressor que é a nossa vida.


Durante o confinamento muito se especulava sobre como seriam os tempos a seguir à pandemia: se as pessoas iriam alterar os seus comportamentos face a novos valores que ressurgiram no isolamento, de que forma é que as empresas e as instituições se iriam organizar para se adaptarem aos novos desafios laborais e sociais, se a aprendizagem nas escolas sofreria uma revolução na sua ministração de conteúdos programáticos, se as relações humanas evoluiriam num sentido inédito, e muitas outras questões que se levantaram para além destas.

Olhando para trás, e para o último ano que passou, o sentimento de normalidade regressou aos nossos dias e, com a normalidade, todas as preocupações e arrelias que faziam parte do nosso quotidiano. Num contexto internacional inesperado e com uma crise económica associada, a nova normalidade foi retornando com as anteriores rotinas diárias a preencherem novamente os dias, conferindo-nos a sensação de que o pior estava a ficar para trás.

Mas não há como esquecer as inquietações e esperanças que se vivenciaram em tempos de isolamento. Lembram-se dos comentadores que versavam sobre a unidade tempo e de como este poderia vir a ter um valor diferente nas nossas vidas? Ou de como passámos a estar mais conscientes para os alertas sobre a degradação dos nossos ecossistemas, a partir do momento em que se avistaram animais selvagens a passear nas cidades e pássaros que não paravam de chilrear nas árvores dos jardins urbanos? Ou os bens que passámos a adjetivar de supérfluos e que já nos víamos a passar bem sem eles no pós-confinamento? E as promessas de mudanças de hábitos que fomos fazendo a nós próprios, à medida que íamos sendo tocados pelo isolamento e conforme as novas rotinas se iam entranhando nos dias que se sucediam, infindáveis?

Pois bem, hoje, parece que nada disso faz sentido e que pouco ou nada mudou. Como se tivéssemos tido uma oportunidade para fazer um “restart” no “modem” dos nossos dias e não a tivéssemos aproveitado.

O supérfluo e tudo o que é supérfluo continua entre nós. O nosso sistema educativo não mereceu nenhuma reflexão sobre o seu estado e sobre uma eventual adequação de outros métodos de ensino às novas técnicas disponíveis para a aprendizagem, em articulação com uma geração de crianças e jovens que estão desconectados com as estratégias curriculares do antigamente. Teria sido um bom momento para se repensar na Educação, desde o Ensino Básico ao Superior, depois da experiência que pais, educadores e alunos comungaram. Para quando uma escola que estimule os nossos jovens a descobrirem a sua vocação, abrindo vários caminhos e oportunidades até ao momento em que terminam o Secundário, e saibam o que querem fazer daí em diante? Ninguém acha estranho que cada vez mais jovens não saibam o que querem seguir nas licenciaturas? Como se fossem empurrados para um destino que não escolheram…

Muito se falou nas reuniões à distância, que tinham vindo para ficar na organização e no funcionamento empresarial e institucional. Mas será que se verificou uma tendência para eliminar as reuniões sem sentido, se incentivou os funcionários a não abrirem mails irrelevantes, ou se criaram espaços próprios para os colaboradores desenvolverem a sua criatividade e investirem em projetos com potencial real para a comunidade? Ou simplesmente se integrou mais uma nova forma de reunir, sem haver uma otimização do tempo, que se traduzisse em rentabilidade no trabalho?

No que se refere ao consumismo, a verdade é que só não consumimos mais porque estamos em crise e a inflação não dá tréguas, com os juros a subirem por aí acima. Depois da pandemia, continuamos a ser instigados a comprar coisas de que não precisamos, a fazer coisas que não apreciamos, com dinheiro que não temos, simplesmente para impressionar pessoas por quem não nutrimos afeto.

Mantém-se a valorização de que quem está muito ocupado é porque deve ser muito importante, em vez de glorificarmos os que entregam o seu tempo aos outros, sejam eles os filhos, os pais, um vizinho, desconhecidos, amigos. O tempo continua a ser mal empregue, de tal modo que há cada vez mais relatos de estudos realizados em doentes em fase terminal que quando questionados o que mudariam na sua vida, muitos referem que gostariam de ter passado mais tempo com “as suas pessoas”.

A vida tem um significado, apesar de todos os esforços que a nossa sociedade e governantes têm feito para desvalorizar o bem mais precioso e inviolável que nos é conferido no momento da conceção. A forma como vivemos a nossa vida, seja ela curta ou longa, também tem o seu significado e valor, e implica escolhas e decisões a cada segundo que passa. Depois da pandemia, parece que nada passou da cepa torta e que tudo o que teve importância em determinada altura, voltou a esvaziar-se na sua relevância, sendo novamente atropelado por este rolo compressor que é a nossa vida, aquela que escolhemos todos os dias, como se não houvesse alternativa.

 

Escreve quinzenalmente