Muitos alemães tendem a concordar com a dama de ferro. A partir de Portugal e do conforto das fronteiras externas mais estáveis na Europa continental poderia ser difícil compreender a relação difícil entre os alemães e a Alemanha. Se evocarmos o passado imperial português, o sofrimento causado pela guerra colonial e o drama da descolonização talvez seja possível encontrar algum terreno comum. No caso alemão a dificuldade resulta em grande medida da construção da República Federal pelas mãos dos vencedores da segunda guerra mundial, num contexto de amputação territorial, ao ter sido simultaneamente criada a República Democrática Alemã. Por essa razão a RFA se referiu sempre à “Alemanha como um todo” e foi esse, do lado da RFA, o sentido da interpretação do Tratado de 1972 pelo qual RFA e RDA se reconheceram mutuamente (nesse sentido cf. a sentença do Tribunal Constitucional Alemão sobre o Tratado de 1972). Os contornos do todo foram fixados provisoriamente em 1949, no preâmbulo da Lei Fundamental de Bona, identificando os 12 Länder da RFA e reservando a aplicação da Constituição aos restantes quando acedessem à mesma. Com a reunificação alemã a fórmula preambular do texto constitucional foi revista, passando a enumerar 16 Länder que “exercendo o direito de auto-determinação alcançaram a liberdade e a unidade da Alemanha.”
A questão da legitimidade da RFA, mesmo reunificada, e independentemente da Lei Fundamental e de sucessivas eleições, mantém-se em aberto para alguns alemães. A legitimidade política pertenceria ainda ao Reich, seja o I, resultante da reunificação alemã pós 1871, ou mesmo ao II, depois da revolução de Novembro e identificado com a República de Weimar ou, para a extrema direita, incluindo o período nazi, autonomizado como III. Os adeptos desta construção, conhecidos no mundo como Reichsbürger, resultam de uma amálgama de grupos com origens muito diversas: saudosistas do império alemão nas suas diversas formas, aristocratas, eurocépticos (incluído o núcleo fundador da Alternativ für Deutschland), críticos do excesso de poder do governo (em particular o federal), anarquistas, anti-semitas, adeptos das teorias da conspiração (defendendo a necessidade de combater um underground government não legitimado pelas urnas), muita gente da extrema direita e quase todos os neo-nazis de além-Reno.
Alguns dos Burgueses do Império existem, sob diferente denominação, noutras latitudes: os adeptos das teorias da conspiração são abundantes nos EUA, Brasil, Hungria e Rússia; os eurocépticos foram maioria no Reino Unido; os críticos dos excessos de poder dos governos multiplicaram-se no contexto da pandemia. Outros destes Burgueses estão mais ligados à história alemã, como noutros Estados estão mais ligados à história local. O revivalismo do império convoca as fronteiras históricas, desde logo as de 1871 ou as de 1937.
Uns e outros promovem actividades grupais e identitárias. Umas são inocentes, ou quase, como a emissão de documentos (cartas de condução do Reich), selos e moedas, concorrendo com as cibermoedas e outros esquemas de Ponzi.
Outras das actividades propõem o golpe de Estado, com projectos de ataque à rede eléctrica para promover um clima de insegurança propício à guerra civil, tomada do poder pela força (ataque ao Bundestag), com apelo aos camaradas armados nas forças armadas e de segurança. Nesta quarta-feira o golpe falhou.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990