Pai, escrevo para ti


Tenho tanto ainda para falar contigo, agora o que faço dessas conversas que nunca chegámos a ter ou nunca chegámos a acabar? Preciso da tua voz. 


DOHA – A lua está cheia no céu, completamente redonda, uma espécie de sol branco e frio. Não há estrelas em seu redor, nem mesmo lá para o fundo, sobre o deserto, no lugar oposto aos edifícios gigantescos que não deixam ver horizontes. Dia 8 de dezembro. Era o teu dia, pai. Era o nosso dia, reunidos à mesa com os teus netos, com os amigos que são como meus irmãos. Corria à Bertrand a comprar-te a prenda de um livro, já não te oferecia cachimbos porque deixaste de fumar, sinto ainda o odor do tabaco Revelation que compravas em caixas cilíndricas. Olho para o alto e sei que, neste tempo que corre, é só por aí que consigo conversar contigo. Pelo céu e pela memória. E tenho tanto ainda para falar contigo, agora o que faço dessas conversas que nunca chegámos a ter ou nunca chegámos a acabar? Preciso da tua voz. Tinhas uma voz única, bonita, bem modelada, uma voz com ternura dentro dela, lembro-me de ser tão pequeno, lá em Santa Cruz, na Madeira, e todos os dias me leres, antes de eu dormir, um capítulo do Nils Holgersson que, no dorso de um ganso branco, seguiu os patos bravos comandados por Akaa de Kebnekaise para o norte onde não havia nem dor nem sofrimento.

Pois, mas a norte ou a sul, a dor instalou-se-me. Veio da perda. Da perda de tudo o que tentei manter junto de mim, a minha segurança, a minha força, a minha luta quotidiana contra essa tristeza que veio crescendo sem parar, silenciosa como um cancro. Escrevo como se fosse para ti, poderia passar o resto da minha vida a escrever para ti, tenho milhões e milhões de palavras cá dentro que são só para ti. Olho a lua cheia e não falo. O céu, mais uma vez, falou por mim como, se através da lua inteira tu, que foste o homem mais por inteiro que conheci, me piscasses o olho num sinal de que nada disto tem importância e, não tarda, voltarás a dar-me a mão como quando eu era um menino de bibe branco a caminho de casa, no ponto mais alto do carinho onde a mãe nos esperava para o almoço. A boca sabe-me a sangue. Mordi com força o lábio de baixo para que ele não trema. Não, hoje não, no teu dia não. Não darei à morte o gozo de me ver chorar.