Portugal. Meter o canivete suíço no bolsinho do colete

Portugal. Meter o canivete suíço no bolsinho do colete


Fernando Santos não esteve para aturar a “fase Dorian Gray” de Ronaldo e sentou-o no banco de onde ele viu uma exibição categórica da seleção nacional e uma das vitórias mais sólidas de todos os Mundiais (6-1 à Suíça). Segue-se Marrocos, o carrasco da Espanha, no próximo dia 10, para os quartos-de-final.


LUSAIL – Fernando Santos fumegou pelas orelhas quando foi confrontado com aquela porcaria que Cristiano Ronaldo soltou de forma conspícua no momento em que se viu substituído no jogo frente à Coreia do Sul e decidiu-se por uma tomada dura de posição, coisa a que costuma ser avesso. O capitão da seleção pagou a desfaçatez com o banco e teremos ficado todos os que vamos acompanhando a presença de Portugal no Qatar com uma pergunta por responder – seria positivo para a equipa enfrentar uma Suíça chata como um crédito bancário dispensando o seu jogador mais importante e mais mediático mesmo que esteja a viver numa fase tipo ‘Dorian Gray’, tão zangado se mostra com o facto de o tempo passar por ele, obliterando-lhe as suas qualidades mais marcantes? Só depois de a bola começar a rolar poderíamos percebê-lo. Mesmo que Cristiano sinta que a sua titularidade na equipa de Portugal é um direito inalienável, conquistada através de uma espécie de usucapião, cada vez começam a ser mais os teóricos que defendem uma revolução interna, muitos deles exigindo ao engenheiro que poupe certos jogadores ao atrofio de terem de conviver no terreno com uma personalidade muito vincada e de um egoísmo que é faceta vincada da sua idiossincrasia. A vontade foi-lhes feita. Gonçalo Ramos apareceu naquele posto do qual Ronaldo costuma fugir, o de homem que não abandona as vizinhanças da grande-área contrária; João Félix fez aquilo que vinha fazendo nos dois primeiros jogos; Otávio e William Carvalho funcionavam como fecho de segurança para a maior liberdade de Bernardo Silva e Bruno Fernandes, embora Bruno não surgisse tanto no meio, que é onde a sua influência realmente se nota, exactamente porque Otávio o afastava de lá.

Posto isto, o assunto era de uma simplicidade aflitiva: ganhar ou ganhar! Afinal tratava-se apenas da Suíça, valha-me Deus, e mesmo que a história nos remeta para uma série incomodativa de maus resultados perante os suíços, se não conseguirmos ser melhores do que eles vamos ser melhores do que quem, não me dizem? Além do mais, com a eliminação da Espanha a meio da tarde, encontrávamo-nos na curiosíssima possibilidade de só termos Marrocos a incomodar-nos o caminho até às meias-finais.

 

Fácil!

O início do jogo ficou marcado. se não pelo medo, por alguma cerimónia demonstrada por ambos os conjuntos na hora de atacarem. Era como se o relvado do Estádio Icónico de Lusail, de seu nome completo, se tivesse transformado em areias movediças tão pantanoso era o futebol apresentado. Mas, eis que de repente, tão de repente, Gonçalo Ramos recebeu uma bola quase na pequena-área de Sommer e disparou com o pé esquerdo para o 1-0 (17m). Os suíços têm fama de fabricarem cofres à prova de qualquer assalto e tiveram, durante muito anos, um futebol irritantemente defensivo, criado por um fulano chamado Karl Rappan e ao qual deram o nome de Ferrolho, que redundava numa frustração para os adversários que pretendiam marcar-lhes golos. Ontem não houve nem cofre nem Ferrolho. Apenas buracos e mais buracos à moda de um queijo Emmental. Por seu lado, o estilo de Portugal era agradável, leve, vistoso, com aquele toque de filigrana que os seus adeptos tanto apreciam. Estavam decorridos 33 minutos quando Pepe fez o 2-0, na sequência de um canto, e ninguém parecia estar a lembrar-se de Ronaldo, nem as câmaras televisivas que, no início, insistiram em perscrutar a sua disposição no banco.

Há quem se queixe do queijo suíço precisamente por ter buracos – afinal no lugar onde estão os buracos não está queijo, não é? O de ontem tinha buracos do tamanho de crateras, de tal forma que o início do segundo tempo serviu para que a seleção nacional chegasse aos 4-0 com golos de Gonçalo Ramos (51m) e Raphaël Guerreiro (55m) e pusesse um ponto final na discussão da eliminatória ainda que, logo em seguida, resolvesse oferecer também, por sua vez, um brinde a Manuel Akanji para o 1-4 (58m). Então sim, o povo lembrou-se de Cristiano Ronaldo. Não propriamente o povo português, que andava ali numa festa, à espera ainda de mais golos – Gonçalo Ramos fez-lhes a vontade com um hat-trick (67m) – mas as bancadas do Lusail que começaram a gritar, de forma concatenada, “Ronaldooo!, Ronaldooo! Ronaldooo!” Pois, mas a verdade é que o Portugal que entrara em campo e no qual Fernando Santos ainda não tinha mexido, não estava a precisar nada de Ronaldo. Pior ainda para o homem que anda de candeias às avessas com a natureza que o priva de ter aquela inacreditável potência de outras eras – como é que o engenheiro vai, agora, poder tirar Gonçalo Ramos da titularidade contra Marrocos? Não, não vejo como.

Num gesto magnânimo, fazendo a vontade ao público barulhento de Lusail e dando ao seu capitão a possibilidade de pôr definitivamente uma pedra sobre um assunto tão desagradável como evitável, deu-lhe os últimos vinte minutos da partida, saindo Gonçalo. Substituição aliás tripla porque saíram também João Félix e Otávio para entrarem Vitinha e Ricardo Horta. Dez minutos mais tarde foi Bernardo Silva a sair, entrando Ruben Neves. Derrotados, os suíços, faziam papel de figurantes numa peça de teatro para a qual, certamente, não queriam ter sido convidados. Dar-lhes-ia um jeitão assumirem, ali mesmo, uma confortável posição de neutralidade, mas não há cá lugar para neutralidades nos oitavos de final de um Campeonato do Mundo. Nem para os maiores especialistas do universo em neutralidades.

Inesperada e admirável a forma como Portugal saiu daquela bisonha sexta-feira de Al-Rayaan, derrotado pela Coreia do Sul de uma forma arrepiantemente ingénua, para surgir ontem com uma saúde mental que o atirou para uma exibição a toda a prova competente e que fica, sem dúvidas, como uma dos momentos mais bonitos história da seleção nacional num Mundial, a tal competição que não parece ser à nossa medida, largueirona que nos tem ficado tanto nas mangas como nas bainhas das calças.

Fernando Santos, responsável pelo gesto que libertou todas as cabeças de fantasmas e atirou para longe aquela tranquibérnia do nono golo de Ronaldo num Mundial que, verdadeiramente, só interessa ao seu ego, gosta de meter as mãos nos bolsos. É um tique. Pois, ontem, meteu o canivete suíço no bolsinho do colete. Com o requinte magnífico daquele golo final de Rafael Leão (90+2m): uma lâmina afiada entrou no peito dos suíços, entre a terceira e a quarta costela, de baixo para cima direita ao coração.