Em Portugal, ainda não chegámos, felizmente, a extremos de ódio e rancor como os existentes em outras sociedades.
Todos temos assistido, com tristeza, ao clima de ódio que envenena e ameaça deslaçar a sociedade brasileira.
Esse ódio e a divisão profunda que ele provoca entre os brasileiros pouco têm já de, objetivamente, racional.
Em qualquer nação – e o Brasil, apesar das diferenças nele existentes, é, verdadeiramente, uma grande nação -, não deixa de haver contradições entre distintos setores e interesses que nela coexistem.
Contudo, uma nação só sobrevive, enquanto tal, se as antinomias existentes não se tornarem definitivamente insuportáveis para um ou outro lado.
Muito do ódio que se espalha, qual óleo poluente, é alimentado, hoje, artificialmente, por redes sociais militantes e populistas.
Antes delas, porém – recordemos -, foram certos media de referência que, subliminarmente, o foram promovendo.
No Brasil, o problema não é já, contudo, o da mentira e das constantes insinuações em que se baseiam as projetadas campanhas mediáticas que alimentam socialmente o ódio de uma parte dos cidadãos contra a outra.
O problema situa-se agora na interiorização profunda do ódio que, por causa delas e para além delas, muitos deles sentem como especialmente seu e os obceca.
É esse ódio, já interiorizado, obsessivo e sem necessidade de qualquer justificação racional para existir, que um número significativo de cidadãos sente necessidade de expressar, mesmo que através de tomadas de posição masoquistas, antidemocráticas e tendencialmente violentas.
Claro que não se pode fazer deitar uma nação num divã de psicanalista, para se poder observar, mais claramente, onde se situa o trauma que a aflige e torna a normal convivência entre os cidadãos que pensam diferentemente impossível.
Mas é pena que isso não possa acontecer: talvez, assim, pudessem os cidadãos de um e outro lado verificar que o que os aflige tem, na verdade, as mesmas causas.
Em Portugal, ainda não chegámos a tais extremos de ódio e de rancor, mas, pacientemente – e também com o auxílio ingénuo, ou oportunista, de determinados media, como, por exemplo, a televisão, – alguns se vão encarregando de, dia após dia, envenenar os pilares mais generosos em que assentou e assenta ainda a nossa democracia.
Pilares que, até hoje, uniram a nação que somos.
É verdade que, face às expectativas criadas depois do 25 de Abril, muitas foram, e são ainda, as desilusões e vários – mas relevantes – os maus trilhos que, por vezes, a nossa democracia percorreu e segue percorrendo.
Os ódios irracionais que tais desilusões e a sua posterior manipulação motivaram passam a integrar, assim, embora de diferente maneira, os discursos políticos adotados por diferentes grupos sociais e de interesses que dão corpo à nossa sociedade.
Tais discursos erguem, todavia, barreiras político-sociais entre os diferentes setores de uma mesma sociedade que, pese a agudização das contradições nela existentes, nunca antes renunciaram a viver juntos.
Só o ódio cego – de que, frequentemente, poucos se apercebem – parece subsistir, então, como motor e orientação única de vida de muitas e revoltadas pessoas que padecem dos mesmos problemas.
Em muitos casos, a razão objetiva de tal ódio está já esquecida; só resta mesmo o ressentimento que dele sobrou.
Mas é, também, por causa dessa aversão irracional que se dão, aos mais diversos níveis, ruturas sociais cada vez mais absurdas, definitivas e violentas.
Muitos dos interesses de uns e de outros são – reconheça-se – diametralmente opostos e de difícil conjugação.
Isso resulta do agravamento das desigualdades, que, além do mais, os faz olhar para a vida de perspetivas totalmente contrárias.
No Portugal dos nossos dias, sente-se já uma tensão nas relações pessoais, familiares, sociais e políticas, como, há muito, não se via.
Dizem os opinion makers que a culpa de tal tensão é da guerra que grassa na Europa, da pandemia, da economia alheia: será?
Mas, para os que mais sofrem, tais justificações pouco explicam.
Na verdade, é difícil esclarecer por que razão são menores o volume e a qualidade dos modestos remédios que, para atenuar a crise e os sofrimentos que ela gera, são destinados aos mais necessitados, quando estes são confrontados com a evidência dos tonificantes generosos, reservados aos sectores sociais bem menos precisados.
A tensão que paira entre nós ainda não se manifestou massiva e agressivamente, como no Brasil, onde as desigualdades são ainda mais gritantes.
Se, porém, não ponderarmos com realismo respostas urgentes e efetivas capazes de refrear tal tensão, lá chegaremos.
Por vezes – é verdade – a melhor resposta aos que exploram aos ressentimentos, sem jamais oferecer um projeto de esperança, é não lhes responder no mesmo tom.
Não se trata, propriamente, de dar a outra face a quem ofende e, menos ainda, de condescender com quem, dos mais necessitados, se aproveita.
Trata-se, sim, de avaliar devidamente a verdade, a origem e o guião do conflito que nos propõem.
Ninguém dança o tango sozinho e cabe a cada um de nós escolher o par e a música que deseja bailar.
Quando, por outro lado, se aceita a dança, indispensável é detetar e fazer compreender as causas reais da insatisfação que a todos, mesmo que diferentemente, agitam.
Assim, se desvelarão as razões verdadeiras dos descontentamentos que, sendo opostos na sua manifestação externa, podem ser, simultaneamente, comuns no plano mais objetivo das causas.
Para descobrir a razão de ser de tais insatisfações confluentes, mas contraditórias, é, pois, necessário, antes do mais, falar verdade.
Identificar e denunciar a sua origem e desembrulhar o papel dos diferentes jornais e panfletos com que a tentam esconder.
Falar verdade e claro quanto às causas que, persistentemente, envenenam a nossa maneira de viver juntos, é, portanto, fundamental.
Soluções para os problemas existem sempre: elas podem é ser mais ou menos ousadas, assumidamente precárias, ou declaradamente projetadas para um tempo maior.
Por isso, importa explicar porque se opta por umas e não por outras, elucidando, ainda, quais as consequências de cada uma delas, a mais curto e a mais longo prazo.
Só deste modo elas adquirirão uma dimensão de futuro que, coerentemente, ofereça ao conjunto de cidadãos que formam uma nação uma esperança coletiva numa vida melhor.