A merencória luz da lua


A pouco e pouco vais-te desvanecendo mas nem por isso me sinto mais livre. É por causa do silêncio, sabes? O silêncio juntava-nos como se fôssemos um só, era através do silêncio que dizíamos um ao outro aquilo que as palavras não conseguem exprimir.


DOHA – Chego a Ras Abu Aboud, este bairro de Doha que tem acesso à praia e ao mar, enquanto o muezzin canta a oração do pôr-do-sol. Ainda há pouco o ouvi, pelas quatro e muito da manhã, à medida que esperava por um sono atrasado, a avisar que ele estava para chegar. É o muezzin que manda no sol ou é o sol que manda no muezzin? Olho para o céu que mergulha num melancólico lusco-fusco. Ouço o João Gilberto: “Essa melancolia que não sai de mim/Não sai…” Depois continua: “Mas se ela voltar…” Não, não voltas. Não há na minha vida espaço para peixinhos a nadar no mar e beijinhos na tua boca, acredita que, muitas vezes, já consigo pensar em ti sem que os teus traços encham o painel da minha lembrança, logo eu que tenho uma memória infinita. A pouco e pouco vais-te desvanecendo mas nem por isso me sinto mais livre. É por causa do silêncio, sabes? O silêncio juntava-nos como se fôssemos um só, era através do silêncio que dizíamos um ao outro aquilo que as palavras não conseguem exprimir.

A lua vai crescendo no céu. Um disco cortado, meio amarelo, meio coberto pela acumulação de poeiras que vêm do deserto, um risco de fumo branco de um avião que passou demandando destinos distantes, quem sabe se misteriosos, destinos que deviam despertar a minha vontade de partir, de partir sempre, de continuar a partir até ao dia que seja impossível voltar. Anunciam lua cheia para o dia 8, tinha de ser, dia redondo para o astro redondo por inteiro, dia redondo para o meu pai Afonso, que faria dia 8 88 anos, não há dia em que não pense nele, não há dia em que não sinta a sua falta através de uma dor que, a certa altura, me preenche por completo, deixando-me inerte, sem nada para escrever ou conversar. Também tu não voltas e não sei como lidar com a irreversibilidade dessa realidade monstruosa. “Vai minha tristeza…” Mas para onde, se irei sempre com ela, de mão dada? “Não há paz/Não há beleza/É só tristeza e a melancolia/Que não sai de mim, não sai de mim, não sai…” Não tinha reparado, mas até o canto do muezzin é taciturno. Deve ser por isso que Ary Barroso falava da merencória luz da lua…

A merencória luz da lua


A pouco e pouco vais-te desvanecendo mas nem por isso me sinto mais livre. É por causa do silêncio, sabes? O silêncio juntava-nos como se fôssemos um só, era através do silêncio que dizíamos um ao outro aquilo que as palavras não conseguem exprimir.


DOHA – Chego a Ras Abu Aboud, este bairro de Doha que tem acesso à praia e ao mar, enquanto o muezzin canta a oração do pôr-do-sol. Ainda há pouco o ouvi, pelas quatro e muito da manhã, à medida que esperava por um sono atrasado, a avisar que ele estava para chegar. É o muezzin que manda no sol ou é o sol que manda no muezzin? Olho para o céu que mergulha num melancólico lusco-fusco. Ouço o João Gilberto: “Essa melancolia que não sai de mim/Não sai…” Depois continua: “Mas se ela voltar…” Não, não voltas. Não há na minha vida espaço para peixinhos a nadar no mar e beijinhos na tua boca, acredita que, muitas vezes, já consigo pensar em ti sem que os teus traços encham o painel da minha lembrança, logo eu que tenho uma memória infinita. A pouco e pouco vais-te desvanecendo mas nem por isso me sinto mais livre. É por causa do silêncio, sabes? O silêncio juntava-nos como se fôssemos um só, era através do silêncio que dizíamos um ao outro aquilo que as palavras não conseguem exprimir.

A lua vai crescendo no céu. Um disco cortado, meio amarelo, meio coberto pela acumulação de poeiras que vêm do deserto, um risco de fumo branco de um avião que passou demandando destinos distantes, quem sabe se misteriosos, destinos que deviam despertar a minha vontade de partir, de partir sempre, de continuar a partir até ao dia que seja impossível voltar. Anunciam lua cheia para o dia 8, tinha de ser, dia redondo para o astro redondo por inteiro, dia redondo para o meu pai Afonso, que faria dia 8 88 anos, não há dia em que não pense nele, não há dia em que não sinta a sua falta através de uma dor que, a certa altura, me preenche por completo, deixando-me inerte, sem nada para escrever ou conversar. Também tu não voltas e não sei como lidar com a irreversibilidade dessa realidade monstruosa. “Vai minha tristeza…” Mas para onde, se irei sempre com ela, de mão dada? “Não há paz/Não há beleza/É só tristeza e a melancolia/Que não sai de mim, não sai de mim, não sai…” Não tinha reparado, mas até o canto do muezzin é taciturno. Deve ser por isso que Ary Barroso falava da merencória luz da lua…