China. Ecos de Mao no regime

China. Ecos de Mao no regime


Xi deu aos comités de bairro poder para trancar chineses em casa, trazendo memórias da Revolução Cultural. A máquina de censura tem de ser afinada. 


Quando tentamos visualizar a máquina de repressão criada por Xi Jinping, talvez a primeira imagem que nos venha à cabeça talvez sejam polícias a olhar para imagens de videovigilância, selecionadas através de reconhecimento facial e inteligência artificial, ou um exército de moderadores a vasculhar a internet e a apagar publicações. Mas, durante a pandemia, o Partido Comunista da China também desenterrou antigas ferramentas, reforçando o seu controlo social através dos comités de bairro, encarregues de aplicar confinamentos. Para os chineses mais velhos, ver militantes do partido decidir se podiam sair de casa ou não, de faixa vermelha no braço, trouxe-lhes à memória abusos dos guardas vermelhos durante o caos da Revolução Cultural. Daí que, quando protestos estragaram os planos de Xi, contestando a «tolerância zero» à covid-19, se ouvissem tantos gritos de: «Reforma, não Revolução Cultural, liberdade não confinamento». E exigindo até o derrube do Presidente chinês.

A contestação fora precipitada por um incêndio num prédio em Ürümqi, a capital de Xinjiang. Enquanto pelo menos dez pessoas eram devoradas pelas chamas, incluindo crianças, vídeos mostravam autotanques dos bombeiros impossibilitados de passar, com estradas obstruídas por vedações de arame, tendas e barreiras colocadas à entrada dos bairros confinados. Testemunhas relataram que as vítimas deram com as saídas de emergência fechadas, cabendo aos comités de bairro do partido (juweihui, em mandarim) decidir quem tem que ficar trancado em casa ou não.

Face a protestos com dezenas de milhares de pessoa e atos de desobediência civil, com multidões a derrubar barreiras que as impediam de escapar de bairros confinados, o regime chinês lá desapertou as restrições em megacidades como Xangai, Chongqing Cantão, Pequim e Zhengzhou. A vice-primeira-ministra chinesa, Sun Chunlan, que aos 72 anos está prestes a reformar-se, veio dar rosto à cedência do seu regime.

«Com a diminuição da patogenicidade da variante Omicron, aumento da taxa de vacinação e a acumulação de experiência de controlo de surtos, a contenção da pandemia da China enfrenta uma nova fase e missão», explicou Sun, a única mulher do Politburo, mais conhecia como a «dama de ferro». Mas todos sabem que, mesmo que Sun fosse formalmente responsável pela resposta à pandemia, quem decidira manter a política de «tolerância zero» fora o seu chefe.

Para o regime de Xi, recuar não significa apenas uma humilhação, mas também um travão nas experiências sociais em curso. Se a sua resposta à pandemia foi tão eficaz – talvez demais, dado que houve tão poucos casos que a baixa taxa de imunidade natural entre chineses pode significar um enorme surto na reabertura – foi porque se alicerçou na base da sociedade. Dividindo os distritos de megacidades em bairros, depois blocos de edifícios e prédios, colocando centenas de milhares de dirigentes locais do partido, ou indivíduos da sua confiança, a dirigir confinamentos, funcionando como batedores num exército de agentes sanitários, vestidos com fatos brancos contra ameaças biológicas. 

Na prática, os dirigentes locais comunistas ganharam poder sem precedentes. Quando Xangai enfrentava um dos confinamentos mais estritos do planeta, em abril, eram eles que entregavam os passes especiais necessários para os infetados irem comprar medicamentos ou outros bens essenciais, escreveu na altura um repórter do New York Times. Têm controlo até no sistema de QR codes com que a China geriu a pandemia.

Para ir a qualquer estabelecimento ou andar nos transportes públicos, os chineses necessitam que o código dê verde ao passá-lo no scanner. Basta que dê laranja, só por terem ido algures onde esteve um contacto de um infetado, para terem a vida suspensa.

Foi o que sucedeu a David Rennie, diretor da delegação do Economist na China. Mesmo após décadas a viver em Pequim, nem sequer fazia ideia onde era a sede do comité do seu bairro. Contudo, descobriu quando recebeu o temido pop-up na aplicação do seu QR code. «A única maneira de limpá-lo foi meter-me numa bicicleta, ir ao comité de bairro, falar com um tipo qualquer, assinar um papel a prometer que não estive onde pensavam que tinha estado e alguém fez uma chamada», descreveu no podcast Drum Tower. Rennie considera a «tolerância zero» uma «dádiva» para Xi, que lhe permite ressuscitar as estruturas de base do partido e controlar como nunca o quotidiano dos chineses.

Aliás, em várias províncias até se testava como aprofundar este sistema dos juweihui, agrupando os moradores em unidades de dez agregados familiares, sob comando de um chefe «politicamente confiável», avançara o Economist na semana anterior. Trata-se de um método com uma história antiga, no tempo da dinastia Qing (1644-1912) já se dividia a sociedade em unidades de dez. Os tibetanos e os uiguires de Xinjiang, vistos com suspeita por Pequim pelas suas tendências separatistas, há muito que eram sujeitos a este sistema, mas não os han, a etnia maioritária na China.

Memórias de Mao

Quando Xi prometeu «aplicar e desenvolver ainda mais o ‘modelo de Fengqiao’» como a base da «governação para uma nova era», durante o último congresso do Partido Comunista da China, em outubro, os chineses já sabiam com o que contar.

Em 1963, Mao Tsé-tung lançara uma campanha para varrer reacionários, incentivando a população a denunciá-los e agir pela sua própria mão contra suspeitos de impureza ideológica. Os habitantes de Fengqiao, uma vila em Zhejiang, esmeraram-se. Arrastaram quase mil dos seus vizinhos e humilharam-nos publicamente, sendo elogiados pelo próprio «grande timoneiro». Entrando assim na mitologia comunista chinesa e ensaiando a Revolução Cultural.

Para Xi, que reclamou para si o título de «grande timoneiro» no último congresso, as memórias deste período são amargas. Quando Mao temeu perder o poder, três anos após Fengqiao, atirou milhões de jovens fanáticos contra os restantes dirigentes do partido, iniciando uma década de caos. O próprio pai do futuro líder, Xi Zhongxun, antigo companheiro de Mao na guerrilha, seria preso. Enquanto o jovem Xi era exilado para a China rural, vivendo na miséria, num programa para endurecer os ‘príncipes vermelhos’, os filhos da elite comunista.

No que toca a Xi, parece ter funcionado. Voltou ainda mais dedicado ao partido que o exilou, subindo na hierarquia. Mas, tendo apreendido com o pai o custo de ser derrubado, assim que chegou ao topo fez questão de assegurar que nunca seria desafiado.

No trono, Xi deparou com a máquina do partido fragilizada, a sua influência social diminuída pela abertura económica nos tempos de Deng Xiaoping, uma tendência que continuou sob os sucessores deste, como Jiang Zemin, que faleceu esta semana. O Presidente chinês, ainda que lhe tenha prestado todas as honras, provavelmente não sentirá a sua falta. Livrou-se de um ancião influente, que o poderia desafiar, além de ter purgado vários aliados de Zemin no seu combate à corrupção.

Xi dedicar-se-ia a acabar com a pouca autonomia que a sociedade chinesa ganhara em relação ao partido comunista, nos tempo de Zemin e Hu Jintao – que pareceu estar descontente no último congresso, sendo arrastado pelo braço para fora da sala. E esse processo só se aprofundou com a pandemia.

Daí que os protestos desta semana contra os confinamentos tenham sido extraordinários. «Está a acontecer num momento em que o Governo chinês tem níveis de controlo sem precedentes, graças ao uso de tecnologia», espantou-se Josh Chin, o vice-diretor do gabinete do Wall Street Journal, à Vox. «Mostra a frustração e coragem destes manifestantes. Que têm noção que são sujeitos a vigilância, que o governo basicamente sabe tudo sobre eles e que têm motivação para os perseguir».

Visto de fora, o aparato de censura online do regime chinês parece tão extraordinário que achamos que a população não faz ideia do que se passa. Mas, nos primeiros momentos após o incêndio em Ürümqi, as imagens alastraram nas redes sociais, sendo partilhadas no WeChat – uma aplicação equivalente ao Whatsapp, com a diferença que o regime de Pequim pode ler as mensagens – e aproveitando a breve demora dos censores em adaptar os algoritmos.

A partir de então, quase todos os chineses estavam a par desta tragédia. E muitos certamente ficaram ainda mais furiosos por clicarem em links, procurando obter mais informações, dando com uma página vazia, porque o conteúdo já fora apagado. Daí que a ligação com o regime de Xi e a sua censura tenha sido quase automática, vendo-se jovens a sair à rua com cartazes em branco. E sendo rapidamente apanhados pela polícia. Pequim lá teve de ceder no que toca à «tolerância zero» à covid-19, mas isso até poderá servir para afinar a máquina.

«O Estado de vigilância na China foi buscar muita coisa emprestada a Sillicon Valley, a nível de técnicas e tecnologia. Ninguém vigia de uma forma mais sofisticada que o Google», lembrou Josh Chin. «Como faria qualquer empresa tecnológica, o partido comunista gosta de iterar os seus sistemas. Está sempre a fazer-lhe updates e a treiná-los para os melhorar».