Está a decorrer no Qatar mais uma edição da festa do futebol. Realizada num calendário estranho, sobretudo para os hábitos europeus, a beleza do jogo, as surpresas em que continua a ser fértil e os sentimentos de pertença e de partilha que despoleta, têm vindo a fazer com que a festa se vá cada vez mais entranhando por todo o globo, até ao seu epílogo, com a final de 18 de dezembro e a definição do Campeão Mundial.
Embora continue a ser na sua essência um desporto, e alguns dos resultados verificados mostrem que continua bem vivo esse lado de franca competição, o futebol profissional tornou-se numa das mais poderosas indústrias do mundo, movimentando tantos milhões quanto paixões, numa mistura explosiva, tendo em conta que a paixão forte tende a desvalorizar a forma como, com base nela, circulam em roda livre e quantas vezes completamente “off-side”, avultadas quantias de dinheiro que nenhum “VAR” valida.
Subscrevo as dúvidas e perplexidades associadas à escolha do Qatar como anfitrião deste mundial. Estou solidário com as famílias dos milhares de trabalhadores migrantes que perderam a sua vida na construção dos estádios e com os outros muitos milhares que nesse processo foram vitimas de abusos e de restrição grave de direitos. Infelizmente este fenómeno de fratura social e esmagamento de direitos não ocorre apenas no Qatar, o que em nada impede que deva ser denunciado e usado para mobilizar as consciências para aquilo que se passa também em muitos outros países do mundo.
Se o clamor geral que se vai ouvindo se mantiver e até se amplificar muito para além das fronteiras do Qatar, mesmo depois das luzes da festa se apagarem, então o sofrimento dos que foram explorados não ficará vingado, mas ganhará um sentido e um reconhecimento que lhe é devido como homenagem. Se pelo contrário, as vozes de súbito se calarem com o final da competição, então tudo não terá passado de mais uma enorme manifestação de cinismo global e lavagem de consciências.
Depois do Qatar, num mundo de eventos cada vez mais globais, no desporto e em muitas outras atividades, virão outros “Qatares”. Os estudos mostram que os países com regimes autoritários são mais atraídos pela promoção de grandes eventos do que os países democráticos. Mais uma razão para a regulação ética, moral e jurídica da organização destes eventos, necessitar de ser objeto de normas claras, justas e transparentes.
A FIFA (International Federation of Association Football) tem demonstrado ser um “Estado” mais poderoso que os Estados, impondo regras absurdas, rasgando convenções e minando a credibilidade da festa. Se há lição a retirar deste Mundial é que a FIFA (e as suas congéneres) não podem ser um território sem lei e onde vale tudo.
Escrito isto, não posso de deixar de sublinhar com alegria de adepto, a forma como o Futebol tem vindo a conseguir mais uma vez, em tempos de grandes complexidades e incertezas, unir os povos, soltar as paixões, juntar ricos e pobres sobre a mesma bandeira, permitir a pequenos países competir de igual para igual com as grandes potências e ser, para quem gosta, e são biliões de pessoas, um dos mais extraordinários espetáculos do mundo.
Eurodeputado do PS