O futebol além das 4 linhas


Num tempo de dificuldades nos quotidianos é inusitada a ida ao Qatar de tantas figuras do Estado.


O futebol é um fenómeno fantástico, que mobiliza, ensandece e supera as circunstâncias do próprio jogo pela grandiosidade do que envolve, sendo palco de todas as expressões da natureza humana, do talento puro aos esquemas mais ardilosos para condicionar e aproveitar o seu potencial emocional, social, económico e desportivo. O Mundial do Qatar é uma dessas expressões desviantes de um organismo responsável pelo futebol, a FIFA, que como tantos outros, não hesita em desvirtuar a natureza do jogo para materializar interesses e opções que toda a gente percebe não terem nada a ver com os fundamentos do desporto. As práticas e os sinais transmitidos aos cidadãos e às comunidades são tenebrosos, mas os cidadãos insistem em tentar contrariar as lideranças e as suas opções com expressões maiores da genuinidade do jogo jogado. É o talento que emerge na relva. É a incerteza do resultado qualquer que seja o ponto de partida dos rankings ou das equipas em contenda. É a mobilização de milhares desconectados pelas distâncias e diferenças, mas convergentes pelos artistas e pelo jogo jogado. É a natureza humana a ter foco em algo que se torna muito mais do que o acessório com que alguns procuram rotular as emoções, os sentimentos e os estados de alma de quem ama o futebol perpetuando o melhor de que ele tem. 

É claro que tamanho poder de mobilização das pessoas e das massas gera interesses, atrações negativas e derivas que em nada contribuem para o desenvolvimento, são da prática desportiva nos escalões de formação, para a afirmação do talento e para a designada verdade desportiva, sujeita a muitos fatores de perturbação e a geometrias variáveis. Num tempo de dificuldades nos quotidianos é inusitada a ida ao Qatar de tantas figuras de Estado, num quadro em que permanecem nuvens negras sobre os comportamentos fiscais e com a segurança social da Federação Portuguesa de Futebol, enquanto instituição com estatuto de utilidade pública. E não haverá nenhum êxito desportivo que desfoque a situação de criatividade fiscal proposta e aceite, que não está ao alcance do cidadão comum. 

Mas o sobressalto cívico e político em relação ao Mundial do Qatar, com os guardiões da FIFA a quererem blindar as polémicas em torno do perfil de governação do país comprador da organização da prova, está a prestar um serviço excecional de democratização dos temas ao fazer chegar preocupações sobre os direitos humanos a um universo maior do que aquele que mantém no azimute dos quotidianos essas questões. Sendo certo que a escolha do país foi um disparate pegado, pela total ausência de ligação à atividade, condições meteorológicas para a realização da competição com uma enorme pegada ecológica, calendário da prova e desrespeito pelos direitos humanos, o Mundial está a ser catalisador e palco de expressões de contestação que abrem horizontes e dão ânimo a causas válidas, da não discriminação sexual às condições de trabalho, passando pelas expressões de liberdade do Irão ou pelo racismo.

A verdade é que o futebol além das 4 linhas, mas também dentro delas por quem não cede ao arbítrio, está a sinalizar que não se deixa corromper pelos grandes interesses e pelos poderes instalados que se submetem a todos os meios para atingir determinados fins. Por muito que alguns possam tentar, o futebol é mais do que o pão e circo dos romanos e como em tantos outros fenómenos de emoções fortes, de paixões e de mobilizações por vezes irracionais o exercício de tentações alheias ao espírito do jogo pode gerar os efeitos contrários. Os processos são muito mais escrutinados, em tempo real e a uma velocidade sem paralelo. Os canais de comunicação são mais diversificados, digitais e implacáveis, por vezes, até com a verdade, mas não se deixam condicionar pelos poderes e interesses instalados no futebol. Continua a haver grandes margens de pensamento, de ação e de realização humana em que dinheiro e os interesses não mandam. O futebol que é em boa parte um jogo democrático, ao alcance de uma bola e de duas equipas, tem esse encanto de ser um turbilhão de emoções nas quatro linhas e de poder ser muito mais fora delas, pelo que sinaliza cívica e politicamente para os cidadãos e as comunidades. O Qatar está a ser o contrário do que os Blaters e os Infantinos venderam e bem. Há ainda muito jogo pela frente, é aproveitar essa fantástica câmara de amplificação mediática que é um Campeonato do Mundo de Futebol. Causas de todo o Mundo, uni-vos! O Mundo mudou e a mudança chegará a quem manda no futebol. Até lá, é disfrutar o talento, a imprevisibilidade e as emoções de um grande espetáculo.

NOTAS FINAIS

CRIMES CONTRA A NORMALIDADE. O Mundo está complicado e as nossas vidas também. As incertezas e as condicionantes tomaram conta dos nossos quotidianos. É cada vez mais difícil manter um rumo, ter previsibilidade, ao ponto de quase fazer sentido que se crie uma espécie de crime contra a normalidade, por disrupções que poderiam ter sido evitadas.

A IMPLOSÃO DA PROXIMIDADE E A FUTURA ULTRAPASSAGEM DA ROMÉNIA. Entregues às estatísticas e aos resultados, afastados cada vez mais das realidades, numa espiral de implosão da proximidade em detrimento da racionalização e da digitalização, desperdiçamos o potencial existente nos territórios. É um pouco como a seleção nacional, muito talento, insuficiente aproveitamento e resultados q.b., mas depois é preciso ver a realidade concreta. E a verdade é que podíamos ser muito melhores, como somos noutras latitudes e longitudes, com outra organização.

TENTATIVA DE HOMICÍDIO DO OTIMISMO PELA VERBORREIA PESSIMISTA. A realidade há muito que não é fácil. Agora que há Orçamento de Estado para 2023, configurado à imagem de uma maioria absoluta, emergiu um clamor presidencial sobre as incertezas e as dificuldades que nos esperam no Ano Novo. O que se espera é que quem pode contribuir para contrariar os cenários negativos, o faça e não tenha comportamentos despesistas como o da viagem ao Catar para ir à bola e mandar uns bitaites. 

OS RESULTADOS DEFINITIVOS DOS CENSOS 21. Passou em rodapé, mas os resultados definitivos dos Censos 21 revelam um país em perda, desequilibrado e com dificuldades de sustentabilidade. Mereciam outra atenção e convergências para estratégias sustentadas de inversão das tendências negativas da demografia e da desertificação de boa parte do território nacional, mas isso é pedir demais.

 

Escreve à quarta-feira

O futebol além das 4 linhas


Num tempo de dificuldades nos quotidianos é inusitada a ida ao Qatar de tantas figuras do Estado.


O futebol é um fenómeno fantástico, que mobiliza, ensandece e supera as circunstâncias do próprio jogo pela grandiosidade do que envolve, sendo palco de todas as expressões da natureza humana, do talento puro aos esquemas mais ardilosos para condicionar e aproveitar o seu potencial emocional, social, económico e desportivo. O Mundial do Qatar é uma dessas expressões desviantes de um organismo responsável pelo futebol, a FIFA, que como tantos outros, não hesita em desvirtuar a natureza do jogo para materializar interesses e opções que toda a gente percebe não terem nada a ver com os fundamentos do desporto. As práticas e os sinais transmitidos aos cidadãos e às comunidades são tenebrosos, mas os cidadãos insistem em tentar contrariar as lideranças e as suas opções com expressões maiores da genuinidade do jogo jogado. É o talento que emerge na relva. É a incerteza do resultado qualquer que seja o ponto de partida dos rankings ou das equipas em contenda. É a mobilização de milhares desconectados pelas distâncias e diferenças, mas convergentes pelos artistas e pelo jogo jogado. É a natureza humana a ter foco em algo que se torna muito mais do que o acessório com que alguns procuram rotular as emoções, os sentimentos e os estados de alma de quem ama o futebol perpetuando o melhor de que ele tem. 

É claro que tamanho poder de mobilização das pessoas e das massas gera interesses, atrações negativas e derivas que em nada contribuem para o desenvolvimento, são da prática desportiva nos escalões de formação, para a afirmação do talento e para a designada verdade desportiva, sujeita a muitos fatores de perturbação e a geometrias variáveis. Num tempo de dificuldades nos quotidianos é inusitada a ida ao Qatar de tantas figuras de Estado, num quadro em que permanecem nuvens negras sobre os comportamentos fiscais e com a segurança social da Federação Portuguesa de Futebol, enquanto instituição com estatuto de utilidade pública. E não haverá nenhum êxito desportivo que desfoque a situação de criatividade fiscal proposta e aceite, que não está ao alcance do cidadão comum. 

Mas o sobressalto cívico e político em relação ao Mundial do Qatar, com os guardiões da FIFA a quererem blindar as polémicas em torno do perfil de governação do país comprador da organização da prova, está a prestar um serviço excecional de democratização dos temas ao fazer chegar preocupações sobre os direitos humanos a um universo maior do que aquele que mantém no azimute dos quotidianos essas questões. Sendo certo que a escolha do país foi um disparate pegado, pela total ausência de ligação à atividade, condições meteorológicas para a realização da competição com uma enorme pegada ecológica, calendário da prova e desrespeito pelos direitos humanos, o Mundial está a ser catalisador e palco de expressões de contestação que abrem horizontes e dão ânimo a causas válidas, da não discriminação sexual às condições de trabalho, passando pelas expressões de liberdade do Irão ou pelo racismo.

A verdade é que o futebol além das 4 linhas, mas também dentro delas por quem não cede ao arbítrio, está a sinalizar que não se deixa corromper pelos grandes interesses e pelos poderes instalados que se submetem a todos os meios para atingir determinados fins. Por muito que alguns possam tentar, o futebol é mais do que o pão e circo dos romanos e como em tantos outros fenómenos de emoções fortes, de paixões e de mobilizações por vezes irracionais o exercício de tentações alheias ao espírito do jogo pode gerar os efeitos contrários. Os processos são muito mais escrutinados, em tempo real e a uma velocidade sem paralelo. Os canais de comunicação são mais diversificados, digitais e implacáveis, por vezes, até com a verdade, mas não se deixam condicionar pelos poderes e interesses instalados no futebol. Continua a haver grandes margens de pensamento, de ação e de realização humana em que dinheiro e os interesses não mandam. O futebol que é em boa parte um jogo democrático, ao alcance de uma bola e de duas equipas, tem esse encanto de ser um turbilhão de emoções nas quatro linhas e de poder ser muito mais fora delas, pelo que sinaliza cívica e politicamente para os cidadãos e as comunidades. O Qatar está a ser o contrário do que os Blaters e os Infantinos venderam e bem. Há ainda muito jogo pela frente, é aproveitar essa fantástica câmara de amplificação mediática que é um Campeonato do Mundo de Futebol. Causas de todo o Mundo, uni-vos! O Mundo mudou e a mudança chegará a quem manda no futebol. Até lá, é disfrutar o talento, a imprevisibilidade e as emoções de um grande espetáculo.

NOTAS FINAIS

CRIMES CONTRA A NORMALIDADE. O Mundo está complicado e as nossas vidas também. As incertezas e as condicionantes tomaram conta dos nossos quotidianos. É cada vez mais difícil manter um rumo, ter previsibilidade, ao ponto de quase fazer sentido que se crie uma espécie de crime contra a normalidade, por disrupções que poderiam ter sido evitadas.

A IMPLOSÃO DA PROXIMIDADE E A FUTURA ULTRAPASSAGEM DA ROMÉNIA. Entregues às estatísticas e aos resultados, afastados cada vez mais das realidades, numa espiral de implosão da proximidade em detrimento da racionalização e da digitalização, desperdiçamos o potencial existente nos territórios. É um pouco como a seleção nacional, muito talento, insuficiente aproveitamento e resultados q.b., mas depois é preciso ver a realidade concreta. E a verdade é que podíamos ser muito melhores, como somos noutras latitudes e longitudes, com outra organização.

TENTATIVA DE HOMICÍDIO DO OTIMISMO PELA VERBORREIA PESSIMISTA. A realidade há muito que não é fácil. Agora que há Orçamento de Estado para 2023, configurado à imagem de uma maioria absoluta, emergiu um clamor presidencial sobre as incertezas e as dificuldades que nos esperam no Ano Novo. O que se espera é que quem pode contribuir para contrariar os cenários negativos, o faça e não tenha comportamentos despesistas como o da viagem ao Catar para ir à bola e mandar uns bitaites. 

OS RESULTADOS DEFINITIVOS DOS CENSOS 21. Passou em rodapé, mas os resultados definitivos dos Censos 21 revelam um país em perda, desequilibrado e com dificuldades de sustentabilidade. Mereciam outra atenção e convergências para estratégias sustentadas de inversão das tendências negativas da demografia e da desertificação de boa parte do território nacional, mas isso é pedir demais.

 

Escreve à quarta-feira