DOHA – Até 1924, em Paris, os Torneios de Futebol dos Jogos Olímpicos eram um bocado selvagens. Ou seja, jogava quem calhasse. E até houve equipas de clube a ganhar medalhas em nome dos países que representavam. Depois veio a FIFA pôs uma certa organização na bandalheira. E, a partir desse ano, perante a ausência no calendário de uma prova que pusesse frente a frente as melhores seleções do planeta, o vencedor da medalha de ouro era considerado a modos como um campeão do mundo avant la lettre.
Equipas nacionais com a força da Inglaterra e da Escócia, da Dinamarca ou da Áustria, mantiveram-se fechadas num casulo que lhes evitava desagradáveis confrontos com adversários que consideravam estar muito abaixo da sua categoria. E, assim sendo, e a despeito da supervisão da FIFA, recusaram-se terminantemente a pôr os pés em França. Por outro lado, nomes sonantes como a Checoslováquia, Itália, Hungria, Suécia e Espanha surgiram entre os participantes e, mais do que isso, entre os favoritos. Ninguém imaginava o que estava para acontecer. Em Montevidéu, no Uruguai, um grupo de pessoas fazia os impossíveis para enviar a Paris uma representação que orgulhasse o seu país. O grupo embarcou num navio chamado Desirade e o guarda-redes e capitão de equipa, Andrés Mazali, ficou encarregado de dirigir a preparação física a bordo durante a longa viagem. No dia 7 de Abril, os uruguaios desembarcaram em Vigo e completaram, mais tarde, a viagem para Paris por comboio.
Logo na Galiza, para restabelecer a forma dos atletas, o Uruguai foi à procura de quem servisse de sparring-partner, isto é, de equipas que estivessem prontas a disputar jogos amigáveis antes de seguirem para França. Em Vigo, contra uma seleção local, ganharam por 3-0 e encantaram o público com o seu futebol virtuoso. O El Mundo Deportivo levantou-se acima de todos os outros para declarar: «Vimos jogar, entre nós, a melhor equipa da história do futebol!».
Paris!
Até ao dia 1 de Maio, os uruguaios mantiveram esse ritmo avassalador e apepinaram seriamente todos os que atreveram a defrontá-lo. Depois de uma massacrante viagem de comboio de 38 horas até Paris, os uruguaios depararam-se com miseráveis condições de estadia. Felizmente para eles, uma mecenas chamada Madame Pain, pôs-lhes à disposição o seu palácio. Talvez por isso tenham jogado como príncipes.
Ninguém, mas absolutamente ninguém, conseguira sequer imitar a arte sublime de Pedro Arispe, José Nasazzi, Peruch Petrone, Pedro Cea o Jorge Leandro Andrade. Em Montevidéu podiam passar a maior parte dos dias dedicados às suas profissões de merceeiro, vendedor de gelo ou cortador de mármore, mas em França iriam mostrar a maior das suas virtudes, com os pés, a gente finíssima.
Em Colombes, no primeiro jogo da competição, Pedro Cea lamentou-se: «Prometeram-nos um assistência de 50 mil pessoas e não vieram mais de três mil». Por seu lado, pleno de confiança, o capitão jugoslavo soltou para os repórteres: «Coitados! Vieram de tão longe para serem já eliminados!» O Uruguai venceu por 7-0. Os adeptos deixavam, embasbacados, correr baba pelos cantos da boca. Na eliminatória seguinte, no Stade Bergeyre, já havia dez mil pessoas em redor do relvado para ver o Uruguai libertar-se dos Estados Unidos por 3-0. Os três golos foram apontados por Andrade, a Maravilha Negra, que fascinava aqueles que nunca tinham visto um jogador de pele preta.
Nos quartos-de-final, 30 mil pessoas juntaram-se para ver ao vivo o França-Uruguai e para perceber definitivamente que estavam perante uma equipa do outro mundo. Se ao intervalo, o resultado era equilibrado (1-2), terminou com limpeza: 5-1 para a Celeste. Já ninguém duvidava que o título olímpico seria deles, sobretudo depois da vitória seguinte sobre a Holanda nas meias-finais, a mais dura de todas, por 2-1.
A final foi em Colombes, frente à Suíça, agora já com mais de 10 mil pessoas a assistir ao inevitável. O Uruguai ganhou por 3-0, e calou a boca dos duvidosos. Jonathan Wilson, um repórter inglês, fascinado com a técnica dos rapazes da América do Sul dedicou-lhes um livro: Angels With Dirty Faces. Tinham-se libertado das grilhetas do anonimato.