Pensão da vida


Ando há muito tempo numa espécie de dança macabra com a morte que nem Saint-Saëns seria capaz de pôr em música. 


DOHA – Compreendo a desilusão de muitos daqueles que se confrontam repentinamente com um destes países do Golfo que se estendem em desertos e zonas de pobre vegetação rasteira, terra empoeirada, cidades em contínua construção (e, depois, em súbitas destruições provocadas por guerras inventadas por outros), centros de ambições desmedidas a partir da altura em que se transformaram nos Países do Ouro Negro. 

Talvez seja por culpa da minha incontrolável ânsia pela viagem; talvez seja culpa do meu avô Joaquim, lá no Quarto Grande da Casa de São Bernardo (de há uns tempos proclamada por mim República Independente de São Bernardo) que, comigo extasiado a seu lado, ia percorrendo com o seu dedo indicador sempre bem cuidado, os mapas de todo o Mundo, das faldas das Montanhas do Pamir às ruínas perdidas do Cambodja, talvez seja culpa de uma vida que me foi cada vez mais despegando dos lugares e me tornou um homem com casa em todo o lado, agora até em Doha, por quase um mês: sinto-me bem, instalo-me, cumpro as rotinas deste lugar como se doutro qualquer se tratasse, conheço pessoas, ouço histórias, move-me aquela ideia romântica de um jornalismo que um dos meus antigos mestres, Alfredo Farinha, concebia como a vontade de observar, de perceber, de esclarecer e de ser útil. Ando há muito tempo numa espécie de dança macabra com a morte que nem Saint-Saëns seria capaz de pôr em música. Não chegou ainda a altura de olhar para trás e perguntar, lá mesmo no fundo da minha consciência tantas vezes adormecida pelo matraquear do qwert que é o som de fundo de toda a minha existência, onde esteve a utilidade de tudo isto. 

Mas cada vez mais estou próximo de fazer como o Torga e começar a fazer contas com a dona da pensão da vida. O sol, lá no alto, é apenas um disco branco para o qual não consigo olhar sem ficar com tonturas. Uma rola, assustada por um carro, levanta voo aflita. É tão pardacenta como tudo em volta e como eu por dentro. Num país sem cor, até os pássaros são cinzentos.

Pensão da vida


Ando há muito tempo numa espécie de dança macabra com a morte que nem Saint-Saëns seria capaz de pôr em música. 


DOHA – Compreendo a desilusão de muitos daqueles que se confrontam repentinamente com um destes países do Golfo que se estendem em desertos e zonas de pobre vegetação rasteira, terra empoeirada, cidades em contínua construção (e, depois, em súbitas destruições provocadas por guerras inventadas por outros), centros de ambições desmedidas a partir da altura em que se transformaram nos Países do Ouro Negro. 

Talvez seja por culpa da minha incontrolável ânsia pela viagem; talvez seja culpa do meu avô Joaquim, lá no Quarto Grande da Casa de São Bernardo (de há uns tempos proclamada por mim República Independente de São Bernardo) que, comigo extasiado a seu lado, ia percorrendo com o seu dedo indicador sempre bem cuidado, os mapas de todo o Mundo, das faldas das Montanhas do Pamir às ruínas perdidas do Cambodja, talvez seja culpa de uma vida que me foi cada vez mais despegando dos lugares e me tornou um homem com casa em todo o lado, agora até em Doha, por quase um mês: sinto-me bem, instalo-me, cumpro as rotinas deste lugar como se doutro qualquer se tratasse, conheço pessoas, ouço histórias, move-me aquela ideia romântica de um jornalismo que um dos meus antigos mestres, Alfredo Farinha, concebia como a vontade de observar, de perceber, de esclarecer e de ser útil. Ando há muito tempo numa espécie de dança macabra com a morte que nem Saint-Saëns seria capaz de pôr em música. Não chegou ainda a altura de olhar para trás e perguntar, lá mesmo no fundo da minha consciência tantas vezes adormecida pelo matraquear do qwert que é o som de fundo de toda a minha existência, onde esteve a utilidade de tudo isto. 

Mas cada vez mais estou próximo de fazer como o Torga e começar a fazer contas com a dona da pensão da vida. O sol, lá no alto, é apenas um disco branco para o qual não consigo olhar sem ficar com tonturas. Uma rola, assustada por um carro, levanta voo aflita. É tão pardacenta como tudo em volta e como eu por dentro. Num país sem cor, até os pássaros são cinzentos.