Modesta como eu…


 Às cinco e tal da manhã, que é quando o sol nasce, o muezzin acorda-me para a primeira oração da manhã. Depois fico acordado e repetir para comigo o “Al ilal il Allah…”. Ninguém se sente verdadeiramente em casa se não falar, volta e meia, para as paredes.


DOHA – Tenho uma casa em Doha. Agora até soou à primeira frase do livro de Karen Blixen… Bem, é uma casa, de certa forma. Ou uma casa dentro de uma casa – há apartamentos ao lado com uma entrada comum, mas sou completamente independente. Fica num bairro que se chama Al Jadeeda, numa rua um bocado arruinada mas com acesso fácil à avenida Al Diwan, uma das artérias que atravessa toda a cidade. Ia a escrever que é uma casinha modesta como eu mas, na verdade, quem somos nós para questionar a nossa própria modéstia? Também não se pode dizer que seja alegre como a da Milú, n’O Costa do Castelo, já que tem apenas uma janela e virada para as traseiras (leia-se um baldio). Ao preço que Afteh, o meu senhorio, cobra, não me posso queixar. Quando ontem, já bem tarde na noite, meti a chave à porta, animado por um certo sentimento de posse, fiquei com uma ideia mais precisa de que é uma casa mais ao género dos Crosby, Stills, Nash & Young, estão a ver? Não, não devem estar. É por causa dos gatos. “Our house is a very, very,very fine house/With two cats in the yard… La,la,la,la,la”, etc. Percebem agora? Há sempre gatos no pátio que fica em frente da entrada e serve de parque de estacionamento. Às vezes também há gatos nas escadas que me conduzem ao segundo andar no n.º 6 da Moussa Bin Nusair (não vale a pena escreverem porque só fico cá um mês), gatos por toda a parte, metendo-se pelo meio dos meus pés. Gosto de gatos. Não gosto de cães: mordem as mãos de quem lhes dá de comer. Além disso repartem comigo o silêncio que mantenho conservado ao não ligar o ar-condicionado que chocalha como uma velha marreca com catarro, imagem muito desagradável, convenhamos, para quem tenta gozar umas horas de solidão no meio do bulício quotidiano. Às cinco e tal da manhã, que é quando o sol nasce, o muezzin acorda-me para a primeira oração da manhã. Depois fico acordado e repetir para comigo o “Al ilal il Allah…”. Ninguém se sente verdadeiramente em casa se não falar, volta e meia, para as paredes.