Uma lágrima no deserto


Nos últimos quinze dias fui a Guayaquil, regressei a Alcácer e vim parar aqui, ao Qatar. No fundo, vou estando no meu posto. O posto da profissão que escolhi e se colou a mim com uma segunda pele e mesmo com a qual passo os dias em carne viva.


DOHA – Eu, que não tenho Deus, ou talvez me tenha calhado o pior de todos eles. Vou ser muçulmano por um mês, testando mais uma crença que me faça perceber a barbaridade da morte. Ou não, porque ela talvez não seja para perceber mas apenas para sentir e estar de acordo como diria Ricardo Reis, o mestre de todos os Pessoas. No dia da sua tomada de posse na Academia Brasileira de Letras, Guimarães Rosa discursou: “As pessoas não morrem, ficam encantadas…” Três dias depois estava morto. Ou encantado. Nos últimos quinze dias fui a Guayaquil, regressei a Alcácer e vim parar aqui, ao Qatar. No fundo, vou estando no meu posto. O posto da profissão que escolhi e se colou a mim com uma segunda pele e mesmo com a qual passo os dias em carne viva. Escrever endurece. Pelo caminho fiquei sem mais uma vida na minha vida. Minha tão querida amiga, Cristina Serra, que conheci quando ela tinha apenas dezasseis anos e começava a poder sair à noite, quando o pai a deixava, encantou-se. Pelo caminho, esse Deus que não tenho e procuro por toda a parte voltou a inquietar o meu tão íntimo desassossego. No momento de lhe dar o último dos abraços, quando me tirou a máscara da cara para que sentíssemos a pele um do outro, quando me suspirou as últimas palavras que lhe ouvi e que ficarão para todo o sempre num segredo só nosso, consegui soerguê-la e percebi que o peso já a havia deixado e lhe restava apenas a leveza da sua alma de passarinho tantas vezes injustamente desiludido. Enquanto caminho pela marginal da Corniche em direcção ao porto onde balouçam os velhos dhows e depois se desenha o círculo aquático dos edifícios a que chamam A Pérola, não consigo ver o sol, embaciado pela areia que o vento arrasta do deserto. Abro e fecho os olhos com força, procurando as lágrimas que os lavem desta poeira fina que teima em secá-los. Ou será que ficaram secos de tanta morte acumulada? Nem que fosse uma só lágrima, dava-me jeito. Porque detesto ter-me tornado num homem que desaprendeu de chorar.

Uma lágrima no deserto


Nos últimos quinze dias fui a Guayaquil, regressei a Alcácer e vim parar aqui, ao Qatar. No fundo, vou estando no meu posto. O posto da profissão que escolhi e se colou a mim com uma segunda pele e mesmo com a qual passo os dias em carne viva.


DOHA – Eu, que não tenho Deus, ou talvez me tenha calhado o pior de todos eles. Vou ser muçulmano por um mês, testando mais uma crença que me faça perceber a barbaridade da morte. Ou não, porque ela talvez não seja para perceber mas apenas para sentir e estar de acordo como diria Ricardo Reis, o mestre de todos os Pessoas. No dia da sua tomada de posse na Academia Brasileira de Letras, Guimarães Rosa discursou: “As pessoas não morrem, ficam encantadas…” Três dias depois estava morto. Ou encantado. Nos últimos quinze dias fui a Guayaquil, regressei a Alcácer e vim parar aqui, ao Qatar. No fundo, vou estando no meu posto. O posto da profissão que escolhi e se colou a mim com uma segunda pele e mesmo com a qual passo os dias em carne viva. Escrever endurece. Pelo caminho fiquei sem mais uma vida na minha vida. Minha tão querida amiga, Cristina Serra, que conheci quando ela tinha apenas dezasseis anos e começava a poder sair à noite, quando o pai a deixava, encantou-se. Pelo caminho, esse Deus que não tenho e procuro por toda a parte voltou a inquietar o meu tão íntimo desassossego. No momento de lhe dar o último dos abraços, quando me tirou a máscara da cara para que sentíssemos a pele um do outro, quando me suspirou as últimas palavras que lhe ouvi e que ficarão para todo o sempre num segredo só nosso, consegui soerguê-la e percebi que o peso já a havia deixado e lhe restava apenas a leveza da sua alma de passarinho tantas vezes injustamente desiludido. Enquanto caminho pela marginal da Corniche em direcção ao porto onde balouçam os velhos dhows e depois se desenha o círculo aquático dos edifícios a que chamam A Pérola, não consigo ver o sol, embaciado pela areia que o vento arrasta do deserto. Abro e fecho os olhos com força, procurando as lágrimas que os lavem desta poeira fina que teima em secá-los. Ou será que ficaram secos de tanta morte acumulada? Nem que fosse uma só lágrima, dava-me jeito. Porque detesto ter-me tornado num homem que desaprendeu de chorar.