AL KHOR – Foi a cerca de quarenta quilómetros a norte de Doha, o ponto mais setentrional deste Campeonato do Mundo de todas as polémicas (e de muita hipocrisia e ignorância pelo meio, pois é assim que reagimos, por uma espécie de tropismo, a tudo o que nos é de alguma forma estranho), que a organização (impecável na maioria dos pormenores, adiante-se desde já) decidiu fazer a festa de abertura, uma festa que obrigou a mexidas no calendário já que estava previsto que tudo começasse na segunda-feira, com dois jogos, Qatar-Equador e Senegal-Holanda (eh pá!, não me lixem mais os Países Baixos que é expressão bastante brejeira, se a sublinharmos com malícia), antecipando-se entretanto o jogo da equipa da casa, dando-lhe assim o merecido destaque, pois então, não se gastam milhões a produzir um evento destes sem devido retorno.
Não sei se chegaram a estar 60 mil espetadores nas bancadas do Al Bayt (o speaker chegou a anunciar 67 mil!, num excesso de entusiasmo infantilóide), mas não restam dúvidas que o branco das dishdashas imperou nas centrais e no terceiro anel, deixando a mancha amarela e a púrpura para trás de cada baliza. O estádio via-se bem ao longe à medida que nos íamos aproximando depois da travessia monótona de bancos de poeira branca cortados pelo alcatrão negro das estradas e por pobres espinheiros e raquíticas acácias amarelas: uma tenda gigante representando a tribo que habita esta região. O termo Bait-al-sha’ar significa exatamente a casa, ou a nossa casa, uma casa ambulante na sua verdadeira aceção, já que de beduínos se trata, e como tal nómadas.
A antecipação do jogo de abertura serviu, igualmente, para dar maior visibilidade aos jogadores da tal casa – neste caso um país inteiro, por muito pequenino que ele seja – e que será, muito provavelmente o organizador de um Mundial que menos expectativas suscita logo à partida, não se prevendo nenhuma surpresa das arábias que o leve para além da fase de grupos, e as suas fragilidades defensivas, que levaram o Equador a cruzar o quarto de hora já com vantagem, num penálti marcado por Valencia que já vira um golo ser anulado logo aos três minutos – marcaria o segundo aos 31m, fechando o resultado. Nessa defesa de areia, por assim dizer, ia cumprindo o seu papel um português de nome portuguesíssimo, Pedro Miguel Carvalho Deus Correia, de alcunha Ró-Ró, de 32 anos, e que já aqui se encontra desde 2011, vindo do Mineiro Aljustrelense, e cumpriu ontem a sua 47.ª internacionalização por esta equipa de uma terra que nem Portugal quis – é o único país do Golfo Pérsico onde não existem vestígios de velhos fortes portugueses. Não contaria certamente um tal de Mem Martins, terra-tenente de vastas terras ali na zona que os árabes chamaram de al-gíran (isto é, cavernas, aportuguesada de Algueirão), que um moço nascido na zona à qual deu o nome viesse a tornar-se um árabe, mas nós sabemos como é profunda a afinidade entre os dois povos, por mais que uma certa corrente bacoca procure diminuí-la. “Salaam Aleikum” para ele, que é como quem diz “A paz esteja consigo”, o verdadeiro salamaleque.
Pouca história
Com uma evidente superioridade – sobretudo nos confrontos físicos – por parte dos equatorianos – o jogo tornou-se desinteressante. Os qataris pura e simplesmente não tinham uma ideia do que fazer com a bola numa demonstração deprimente de iniquidade. Não se vislumbrava maneira de alguém conseguir trazer mais entusiasmo do que no momento em que Morgan Freeman, o ator que gosta de fazer de Deus, se sentou no chão para poder falar cara-a-cara com um rapazinho amputado de metade do corpo. Bela conversa, diga-se de passagem, digna de um episódio de Who Is God?, na qual se aproveitou para fazer a apologia da igualdade, neste lugar do planeta onde teimam em esquecê-la. Como também (tirando os ruidosos equatorianos, bem encaixados num feixe) não houve fase de maior alegria por parte do público do que a provocada por Jung Kook, este novo ídolo sul-coreano da moda que ‘desarrincou’ a música que serviu para que a malta mais jovem saltasse nas bancadas durante o tempo em que durou a festa programada pela FIFA, com início pelas 17h30, ainda por cima quando teve em palco a companhia de um colega local, Fahad Al-Kubaisi. “Haya-Haya” cantou-se em coro: É Melhor Juntos. Não se pode dizer que o Mundial que teve início no domingo, pelas quatro da tarde em Portugal, encaixe muito bem com a palavra juntos. Aliás, a verdade é que o mundo não anda muito junto nos dias que correm, de novo dividido entre ambições desmedidas que teimam em separar-nos. A própria cidade de Al Khor, situada numa bacia petrolífera que ocupa a baía onde nasceu (Al Khor pode traduzir-se por A Baía), foi um foco de problemas durante várias décadas entre o Qatar e o Bahrain, cada um reclamando para si as jazidas subaquáticas desse tão desejado ouro negro.
Pouco satisfeitos com o que a sua equipa não fazia no relvado, os adeptos trataram de se ir dando às de Vila Diogo. Muitos foram os que já não regressaram após o intervalo, aproveitando para sair antes da confusão final de carros da polícia a desenculatrarem o trânsito para dar prioridade às limusinas dos VIP, e muitos outros foram saindo durante um segundo tempo que chegou a ser uma boa pasmaceira. Ou uma grandessíssima estucha, como diria o Ega do Divino Eça, que também andou por aqui, lá no topo do Golfo, a assistir à inauguração do Canal do Suez. Afinal ainda havia uns bons quarenta quilómetros para guiar até casa… No Qatar é longe!