A responsabilidade do Ministério Público


Se a crítica institucional ao MP, pela sua atuação em cada caso, podia – com mais ou menos acerto – justificar-se antes, hoje tal crítica genérica parece não mais se justificar.


A propósito da correção ou incorreção de uma acusação a um membro do governo, muitos se têm pronunciado sobre a necessidade do apuramento da responsabilidade do Ministério Público por ela (MP).

Por não conhecer o processo e por, além disso, estar obrigado ao dever de reserva, não me irei aqui pronunciar sobre o acerto ou desacerto de tal peça processual.

O que me leva a debruçar sobre este momentoso tema é o aparente, reiterado e estranho desconhecimento dos autores de tais comentários relativamente ao Estatuto do MP e à prática atualmente instituída de autorresponsabilização de cada procurador pelos processos de que é titular.

Se a crítica institucional ao MP, pela sua atuação em cada caso, podia – com mais ou menos acerto – justificar-se antes, hoje tal crítica genérica parece não mais se justificar.

Na verdade, mesmo que os princípios estruturantes da magistratura do MP se mantenham inalteráveis – a autonomia, hierarquia e responsabilidade –na Constituição e no Estatuto, a leitura interna de tais diplomas tem evoluído no sentido da cabal autorresponsabilização do titular de cada processo pelo seu percurso e destino.

Lembremos, a propósito, a polémica política suscitada por uma diretiva da PGR sobre a possibilidade de os superiores hierárquicos poderem intervir, tempestiva e ativamente, na orientação seguida nos processos de que os procuradores por eles coordenados são titulares.

Em nome do perigo para a autonomia do MP, muitas foram, então, as vozes de políticos, comentadores e jornalistas que contra tal diretiva se fizeram ouvir.

Mais recentemente, o Tribunal de Justiça da União Europeia focou-se, também, em tal problemática.

Sustentou que o MP, para poder ser considerado uma autoridade judiciária e assim tomar certas iniciativas processuais na fase de inquérito, deveria ser institucionalmente independente dos órgãos do poder político: independente e não autónomo, note-se.

Referindo-se ao MP francês, afirmou, porém, que o facto de, no seio do MP, poderem existir diretivas, instruções e ordens com incidência processual genérica ou concreta dimanadas dos magistrados com competência de coordenação e chefia para os de graus hierárquico inferior não punha em causa essa independência institucional.

A Itália, país que mais desenvolvidamente concretizou, legal e praticamente, o princípio da autorresponsabilização dos procuradores, viu-se, entretanto, obrigada a corrigir a radicalidade de tal orientação.

A razão de tal mudança residiu no impacto público do insucesso do MP na condução e nos resultados de muitos casos com relevância social.

Hoje, o MP italiano retornou à ideia da titularidade dos processos pelos procuradores chefes, passando os procuradores por eles coordenados a agir, como em França, por delegação.

Isto, mesmo que, em geral, tal delegação se presuma atribuída aos procuradores adjuntos.

Mas, mais: certos atos e iniciativas processuais passaram a depender da prévia concordância concreta dos procuradores chefes.

Refiro-me a medidas como, por exemplo, a da proposta da prisão preventiva e as de certas buscas e apreensões.

Com tais medidas, procurou o legislador italiano aprofundar a coerência e colegialidade do desempenho do MP e, em consequência, a sua responsabilidade institucional.

Hoje, dada a mais frequente envolvência da hierarquia na orientação dos processos mais relevantes que ocorrem nesse país, pode, pois, falar-se em responsabilidade do MP enquanto instituição, e não da simples responsabilidade dos procuradores que, pessoalmente, dirigiram as investigações e decidiram o seu desfecho, através de uma acusação ou despacho de arquivamento.

A situação atual do MP português tem vantagens e desvantagens.

Por um lado, pode assumir-se que – para além das poucas e limitadas intervenções previstas no Código de Processo Penal – não se admitindo quaisquer outras instruções ou ordens hierárquicas que corrijam, no seu decurso, a orientação assumida pelo titular do processo, se impossibilita, de facto, qualquer tipo de coerção interna sobre ele.

Tal situação leva, porém, à plena e exclusiva responsabilização do procurador que titula o processo pela condução, atos e iniciativas que nele tomou.

Tratando-se de um procurador jovem ou com menor experiência, poderá ser um fardo demasiado pesado e com consequências óbvias para todos: para os cidadãos e para ele.

Por outro lado, esta autorresponsabilização total do procurador titular do processo irresponsabiliza, concomitante e oportunamente, a hierarquia.

Por essa razão, os procuradores mais experientes e mais bem classificados – requisitos para a sua nomeação como coordenadores das comarcas e departamentos e dirigentes – ficam isentos de responsabilidade processual.

Através desta assumida limitação do conceito de hierarquia no MP português, personaliza-se e transfere-se, como dissemos, para os magistrados de grau inferior todo o peso da responsabilidade processual, mesmo nos casos mais complexos e relevantes para o país.

A exceção, reside na – ainda subsistente e extraordinária – possibilidade de avocação pela hierarquia de um dado processo, mesmo que, atualmente, esse poder/dever se intitule «assumir a direção do inquérito» e esteja delimitado pelos pressupostos previstos no Estatuto.

A assumida limitação do conceito de hierarquia parece, no entanto, não corresponder, exatamente, às características que a Constituição pretendia para o MP: autonomia externa, hierarquia interna e responsabilidade de todos os que, neste contexto, devem, assim, intervir na condução dos processos.

Mais, contende com as preocupações de coerência e igualdade de tratamento dos cidadãos que levaram o legislador a atribuir a direção do Inquérito criminal ao MP, por, precisamente, ser uma magistratura com capacidade de organização flexível e ser capaz de estabelecer uma coordenação interna para responder, com algum grau de uniformidade, ao fenómeno criminal.

Falar, pois, hoje, em responsabilidade do MP não tem já sentido entre nós.

Os únicos responsáveis a quem se pode atribuir os louros e as culpas por um dado resultado processual são, pessoalmente e só, os procuradores que, em concreto, dirigiram e concluíram um processo determinado.

Como os juízes, eles são os únicos e reais responsáveis pelas decisões que tomaram em nome do MP.

É, pois, imprescindível que os políticos, comentadores e jornalistas que escrevem  agora  sobre este assunto, assacando coletivas responsabilidades institucionais ao MP, estejam conscientes destas limitações e das consequências que delas derivam.

      

 

   

 

 

A responsabilidade do Ministério Público


Se a crítica institucional ao MP, pela sua atuação em cada caso, podia – com mais ou menos acerto – justificar-se antes, hoje tal crítica genérica parece não mais se justificar.


A propósito da correção ou incorreção de uma acusação a um membro do governo, muitos se têm pronunciado sobre a necessidade do apuramento da responsabilidade do Ministério Público por ela (MP).

Por não conhecer o processo e por, além disso, estar obrigado ao dever de reserva, não me irei aqui pronunciar sobre o acerto ou desacerto de tal peça processual.

O que me leva a debruçar sobre este momentoso tema é o aparente, reiterado e estranho desconhecimento dos autores de tais comentários relativamente ao Estatuto do MP e à prática atualmente instituída de autorresponsabilização de cada procurador pelos processos de que é titular.

Se a crítica institucional ao MP, pela sua atuação em cada caso, podia – com mais ou menos acerto – justificar-se antes, hoje tal crítica genérica parece não mais se justificar.

Na verdade, mesmo que os princípios estruturantes da magistratura do MP se mantenham inalteráveis – a autonomia, hierarquia e responsabilidade –na Constituição e no Estatuto, a leitura interna de tais diplomas tem evoluído no sentido da cabal autorresponsabilização do titular de cada processo pelo seu percurso e destino.

Lembremos, a propósito, a polémica política suscitada por uma diretiva da PGR sobre a possibilidade de os superiores hierárquicos poderem intervir, tempestiva e ativamente, na orientação seguida nos processos de que os procuradores por eles coordenados são titulares.

Em nome do perigo para a autonomia do MP, muitas foram, então, as vozes de políticos, comentadores e jornalistas que contra tal diretiva se fizeram ouvir.

Mais recentemente, o Tribunal de Justiça da União Europeia focou-se, também, em tal problemática.

Sustentou que o MP, para poder ser considerado uma autoridade judiciária e assim tomar certas iniciativas processuais na fase de inquérito, deveria ser institucionalmente independente dos órgãos do poder político: independente e não autónomo, note-se.

Referindo-se ao MP francês, afirmou, porém, que o facto de, no seio do MP, poderem existir diretivas, instruções e ordens com incidência processual genérica ou concreta dimanadas dos magistrados com competência de coordenação e chefia para os de graus hierárquico inferior não punha em causa essa independência institucional.

A Itália, país que mais desenvolvidamente concretizou, legal e praticamente, o princípio da autorresponsabilização dos procuradores, viu-se, entretanto, obrigada a corrigir a radicalidade de tal orientação.

A razão de tal mudança residiu no impacto público do insucesso do MP na condução e nos resultados de muitos casos com relevância social.

Hoje, o MP italiano retornou à ideia da titularidade dos processos pelos procuradores chefes, passando os procuradores por eles coordenados a agir, como em França, por delegação.

Isto, mesmo que, em geral, tal delegação se presuma atribuída aos procuradores adjuntos.

Mas, mais: certos atos e iniciativas processuais passaram a depender da prévia concordância concreta dos procuradores chefes.

Refiro-me a medidas como, por exemplo, a da proposta da prisão preventiva e as de certas buscas e apreensões.

Com tais medidas, procurou o legislador italiano aprofundar a coerência e colegialidade do desempenho do MP e, em consequência, a sua responsabilidade institucional.

Hoje, dada a mais frequente envolvência da hierarquia na orientação dos processos mais relevantes que ocorrem nesse país, pode, pois, falar-se em responsabilidade do MP enquanto instituição, e não da simples responsabilidade dos procuradores que, pessoalmente, dirigiram as investigações e decidiram o seu desfecho, através de uma acusação ou despacho de arquivamento.

A situação atual do MP português tem vantagens e desvantagens.

Por um lado, pode assumir-se que – para além das poucas e limitadas intervenções previstas no Código de Processo Penal – não se admitindo quaisquer outras instruções ou ordens hierárquicas que corrijam, no seu decurso, a orientação assumida pelo titular do processo, se impossibilita, de facto, qualquer tipo de coerção interna sobre ele.

Tal situação leva, porém, à plena e exclusiva responsabilização do procurador que titula o processo pela condução, atos e iniciativas que nele tomou.

Tratando-se de um procurador jovem ou com menor experiência, poderá ser um fardo demasiado pesado e com consequências óbvias para todos: para os cidadãos e para ele.

Por outro lado, esta autorresponsabilização total do procurador titular do processo irresponsabiliza, concomitante e oportunamente, a hierarquia.

Por essa razão, os procuradores mais experientes e mais bem classificados – requisitos para a sua nomeação como coordenadores das comarcas e departamentos e dirigentes – ficam isentos de responsabilidade processual.

Através desta assumida limitação do conceito de hierarquia no MP português, personaliza-se e transfere-se, como dissemos, para os magistrados de grau inferior todo o peso da responsabilidade processual, mesmo nos casos mais complexos e relevantes para o país.

A exceção, reside na – ainda subsistente e extraordinária – possibilidade de avocação pela hierarquia de um dado processo, mesmo que, atualmente, esse poder/dever se intitule «assumir a direção do inquérito» e esteja delimitado pelos pressupostos previstos no Estatuto.

A assumida limitação do conceito de hierarquia parece, no entanto, não corresponder, exatamente, às características que a Constituição pretendia para o MP: autonomia externa, hierarquia interna e responsabilidade de todos os que, neste contexto, devem, assim, intervir na condução dos processos.

Mais, contende com as preocupações de coerência e igualdade de tratamento dos cidadãos que levaram o legislador a atribuir a direção do Inquérito criminal ao MP, por, precisamente, ser uma magistratura com capacidade de organização flexível e ser capaz de estabelecer uma coordenação interna para responder, com algum grau de uniformidade, ao fenómeno criminal.

Falar, pois, hoje, em responsabilidade do MP não tem já sentido entre nós.

Os únicos responsáveis a quem se pode atribuir os louros e as culpas por um dado resultado processual são, pessoalmente e só, os procuradores que, em concreto, dirigiram e concluíram um processo determinado.

Como os juízes, eles são os únicos e reais responsáveis pelas decisões que tomaram em nome do MP.

É, pois, imprescindível que os políticos, comentadores e jornalistas que escrevem  agora  sobre este assunto, assacando coletivas responsabilidades institucionais ao MP, estejam conscientes destas limitações e das consequências que delas derivam.