Heranças passadas não movem moinhos


O discurso político sobre a importância da ciência e da educação superior é já dissonante com a realidade do apoio do Estado. Como compreender que, para além desta dissonância, e para temas que não dependem de disponibilidade orçamental, estejamos ainda a viver de heranças passadas, claramente desajustadas aos desafios dos próximos 30 anos em Portugal?


Por Luís Oliveira e Silva

Já este mês [1], Lord Martin Rees, um dos mais reputados cientistas e académicos do Reino Unido, publicou um artigo em que questiona a capacidade das universidades e dos institutos de investigação no seu país para serem os locais ideais, no contexto atual, para investigação de horizontes temporais longos. As questões subjacentes, e que podem ser traduzidas para a realidade portuguesa, são simples: será que as instituições que temos irão conseguir responder aos desafios com que Portugal se irá confrontar nos próximos 30 anos? E a forma como se organizam, é a que melhor serve o propósito último da sua tripla missão de ensino, investigação e ligação à sociedade?

Lord Martin Rees argumenta que as pressões a que as universidades estão sujeitas no Reino Unido, muito semelhantes ao que ocorre em Portugal, estão a conduzi-las a um ponto em que estão a deixar de ser: polos para o desenvolvimento das carreiras dos jovens cientistas; fontes para a pesquisa científica sem fronteiras; as instituições mais bem preparadas para o desenvolvimento de programas de investigação de longo prazo, ou para a resposta rápida a emergências. Defende que alguns exemplos das ciências biológicas, como o Laboratory of Molecular Biology do Medical Research Council em Cambridge ou o Francis Crick Institute em Londres, estão mais bem preparados, por estarem também melhor financiados e por fontes mais diversas, para responderem aos grandes desafios científicos e tecnológicos associados à energia, ao clima ou às tecnologias da informação.

Os desafios das instituições universitárias e de investigação em Portugal são ainda mais agudos do que em países, como o Reino Unido e os Estados Unidos, em que o pragmatismo é a norma. Como escreve Jorge Calado, na sua brilhante autobiografia “Mocidade Portuguesa” [2], “Só a burocracia continua lenta em Portugal. Pior: está mais lenta e kafkiana. Herdámos da ditadura o desejo de complicar a vida a todos para que os videirinhos e donos disto tudo se possam safar”. É comum sermos confrontados com regras difíceis de compreender, pedidos sem justificação, processos insanos que desperdiçam recursos e nos tornam muito menos competitivos.  Este problema, endémico a todos os sectores com algum tipo de ligação ao Estado, não é exclusivo das universidades ou da ciência em Portugal – aí é apenas absolutamente evidente pela comparação (e competição) direta com outras instituições de todo mundo. No passado, desafios equivalentes, de menor escala, foram ultrapassados com criatividade. Por exemplo, em 1980, através do exemplo pioneiro do INESC-Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores [3] e dos seus fundadores, professores do Técnico recém-chegados do estrangeiro (José Tribolet, João Lourenço Fernandes e Luís Vidigal), criaram-se instituições privadas sem fins lucrativos para aí desenvolver investigação e desenvolvimento sem os espartilhos, conceptuais e formais, das universidades. 

Houve muitos progressos nas universidades e nos próprios institutos, mas a “maturidade” (e até alguma “rigidificação” das instituições) exige agora um salto mais ambicioso que dote o país de instituições mais modernas, mais preparadas e com a autonomia reforçada. Alguns exemplos dos anacronismos existentes, por exemplo nas universidades, incluem processos bizantinos de acreditação de novos cursos propostos por instituições já avaliadas institucionalmente, carreiras desalinhadas com as boas práticas internacionais incluindo restrições processuais que fazem arrastar os processos de recrutamento de professores e investigadores, ausência de instrumentos de gestão e de incentivos para as carreiras técnicas e administrativas, participação quase simbólica da sociedade civil na direção estratégica das instituições, ou excessiva uniformização e dificuldade em abraçar a diversidade institucional. Observe-se que algumas destas limitações são auto-impostas, pela dificuldade de muitas instituições se auto-regenerarem ou por receios, plenamente justificados, dos efeitos persecutórios de outras zelosas instituições de controlo, mais focadas na letra da lei e quase nunca na boa utilização dos recursos públicos ou na prossecução da missão das instituições.   

O discurso político sobre a importância da ciência e da educação superior é já dissonante com a realidade do apoio do Estado. Como compreender que, para além desta dissonância, e para temas que não dependem de disponibilidade orçamental, estejamos ainda a viver de heranças passadas, claramente desajustadas aos desafios dos próximos 30 anos em Portugal? 

Prevê-se, para breve, o início da discussão das carreiras de investigação e de docência e, eventualmente, da própria organização das instituições de ensino superior, através do seu Regime Jurídico. Temo que voltemos a cair na tentação de servir os diferentes grupos de interesse, que legitimamente se farão ouvir, e não se estudem, e se estimulem, todos os bons exemplos que, em algumas instituições, já estão em prática. Temo que atavismos ideológicos toldem uma reflexão racional, baseada nas evidências, e se sobreponham aos princípios fundamentais com que as instituições universitárias e científicas devem ser dotadas: autonomia, independência e liberdade, não só do que ensinam e investigam, mas também de como se organizam, como se gerem e como respondem e servem a causa pública. Temo, também, que se confunda responsabilização e avaliação da missão com mais burocracia e menos consequências institucionais. 

Os desafios que se colocam a Portugal e ao nosso sistema universitário, de ciência e tecnologia são, naturalmente, muito diferentes daqueles que se colocam ao Reino Unido. No entanto, os alertas de Martin Rees são igualmente importantes para nós – se, de facto, acreditamos que a educação superior e a ciência são centrais para o desenvolvimento do país, devemos preparar não só os futuros profissionais e cientistas, mas também as instituições (ou, quando não existirem, criar essas instituições), e o contexto em que se movem, para estarem mais bem preparadas para serem os moinhos e os motores do nosso progresso.   

[1] https://www.researchprofessionalnews.com/rr-news-uk-views-of-the-uk-2022-11-uk-universities-are-losing-their-edge-in-research/

[2] J. Calado, “Mocidade Portuguesa”, Imprensa Nacional, Março 2022 

[3] https://www.publico.pt/2020/07/06/sociedade/noticia/quatro-decadas-aceleracao-permanente-1923142 

Heranças passadas não movem moinhos


O discurso político sobre a importância da ciência e da educação superior é já dissonante com a realidade do apoio do Estado. Como compreender que, para além desta dissonância, e para temas que não dependem de disponibilidade orçamental, estejamos ainda a viver de heranças passadas, claramente desajustadas aos desafios dos próximos 30 anos em Portugal?


Por Luís Oliveira e Silva

Já este mês [1], Lord Martin Rees, um dos mais reputados cientistas e académicos do Reino Unido, publicou um artigo em que questiona a capacidade das universidades e dos institutos de investigação no seu país para serem os locais ideais, no contexto atual, para investigação de horizontes temporais longos. As questões subjacentes, e que podem ser traduzidas para a realidade portuguesa, são simples: será que as instituições que temos irão conseguir responder aos desafios com que Portugal se irá confrontar nos próximos 30 anos? E a forma como se organizam, é a que melhor serve o propósito último da sua tripla missão de ensino, investigação e ligação à sociedade?

Lord Martin Rees argumenta que as pressões a que as universidades estão sujeitas no Reino Unido, muito semelhantes ao que ocorre em Portugal, estão a conduzi-las a um ponto em que estão a deixar de ser: polos para o desenvolvimento das carreiras dos jovens cientistas; fontes para a pesquisa científica sem fronteiras; as instituições mais bem preparadas para o desenvolvimento de programas de investigação de longo prazo, ou para a resposta rápida a emergências. Defende que alguns exemplos das ciências biológicas, como o Laboratory of Molecular Biology do Medical Research Council em Cambridge ou o Francis Crick Institute em Londres, estão mais bem preparados, por estarem também melhor financiados e por fontes mais diversas, para responderem aos grandes desafios científicos e tecnológicos associados à energia, ao clima ou às tecnologias da informação.

Os desafios das instituições universitárias e de investigação em Portugal são ainda mais agudos do que em países, como o Reino Unido e os Estados Unidos, em que o pragmatismo é a norma. Como escreve Jorge Calado, na sua brilhante autobiografia “Mocidade Portuguesa” [2], “Só a burocracia continua lenta em Portugal. Pior: está mais lenta e kafkiana. Herdámos da ditadura o desejo de complicar a vida a todos para que os videirinhos e donos disto tudo se possam safar”. É comum sermos confrontados com regras difíceis de compreender, pedidos sem justificação, processos insanos que desperdiçam recursos e nos tornam muito menos competitivos.  Este problema, endémico a todos os sectores com algum tipo de ligação ao Estado, não é exclusivo das universidades ou da ciência em Portugal – aí é apenas absolutamente evidente pela comparação (e competição) direta com outras instituições de todo mundo. No passado, desafios equivalentes, de menor escala, foram ultrapassados com criatividade. Por exemplo, em 1980, através do exemplo pioneiro do INESC-Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores [3] e dos seus fundadores, professores do Técnico recém-chegados do estrangeiro (José Tribolet, João Lourenço Fernandes e Luís Vidigal), criaram-se instituições privadas sem fins lucrativos para aí desenvolver investigação e desenvolvimento sem os espartilhos, conceptuais e formais, das universidades. 

Houve muitos progressos nas universidades e nos próprios institutos, mas a “maturidade” (e até alguma “rigidificação” das instituições) exige agora um salto mais ambicioso que dote o país de instituições mais modernas, mais preparadas e com a autonomia reforçada. Alguns exemplos dos anacronismos existentes, por exemplo nas universidades, incluem processos bizantinos de acreditação de novos cursos propostos por instituições já avaliadas institucionalmente, carreiras desalinhadas com as boas práticas internacionais incluindo restrições processuais que fazem arrastar os processos de recrutamento de professores e investigadores, ausência de instrumentos de gestão e de incentivos para as carreiras técnicas e administrativas, participação quase simbólica da sociedade civil na direção estratégica das instituições, ou excessiva uniformização e dificuldade em abraçar a diversidade institucional. Observe-se que algumas destas limitações são auto-impostas, pela dificuldade de muitas instituições se auto-regenerarem ou por receios, plenamente justificados, dos efeitos persecutórios de outras zelosas instituições de controlo, mais focadas na letra da lei e quase nunca na boa utilização dos recursos públicos ou na prossecução da missão das instituições.   

O discurso político sobre a importância da ciência e da educação superior é já dissonante com a realidade do apoio do Estado. Como compreender que, para além desta dissonância, e para temas que não dependem de disponibilidade orçamental, estejamos ainda a viver de heranças passadas, claramente desajustadas aos desafios dos próximos 30 anos em Portugal? 

Prevê-se, para breve, o início da discussão das carreiras de investigação e de docência e, eventualmente, da própria organização das instituições de ensino superior, através do seu Regime Jurídico. Temo que voltemos a cair na tentação de servir os diferentes grupos de interesse, que legitimamente se farão ouvir, e não se estudem, e se estimulem, todos os bons exemplos que, em algumas instituições, já estão em prática. Temo que atavismos ideológicos toldem uma reflexão racional, baseada nas evidências, e se sobreponham aos princípios fundamentais com que as instituições universitárias e científicas devem ser dotadas: autonomia, independência e liberdade, não só do que ensinam e investigam, mas também de como se organizam, como se gerem e como respondem e servem a causa pública. Temo, também, que se confunda responsabilização e avaliação da missão com mais burocracia e menos consequências institucionais. 

Os desafios que se colocam a Portugal e ao nosso sistema universitário, de ciência e tecnologia são, naturalmente, muito diferentes daqueles que se colocam ao Reino Unido. No entanto, os alertas de Martin Rees são igualmente importantes para nós – se, de facto, acreditamos que a educação superior e a ciência são centrais para o desenvolvimento do país, devemos preparar não só os futuros profissionais e cientistas, mas também as instituições (ou, quando não existirem, criar essas instituições), e o contexto em que se movem, para estarem mais bem preparadas para serem os moinhos e os motores do nosso progresso.   

[1] https://www.researchprofessionalnews.com/rr-news-uk-views-of-the-uk-2022-11-uk-universities-are-losing-their-edge-in-research/

[2] J. Calado, “Mocidade Portuguesa”, Imprensa Nacional, Março 2022 

[3] https://www.publico.pt/2020/07/06/sociedade/noticia/quatro-decadas-aceleracao-permanente-1923142