A falta de protecção da maternidade nos nossos tribunais


Julgávamos não ser possível no Portugal do séc. XXI um órgão do Estado entender que a protecção das mulheres pode ser comprimida em benefício de outros valores e que é lícito dizer a uma mulher puérpera para se apresentar em Tribunal nove dias após o parto.


O art. 68º, nº3, da Constituição estabelece que “as mulheres têm direito a especial proteção durante a gravidez e após o parto, tendo as mulheres trabalhadoras ainda direito a dispensa do trabalho por período adequado, sem perda da retribuição ou de quaisquer regalias”. Em execução dessa disposição, o art. 2º do Decreto-Lei 131/2009, de 1 de Junho, estabelece que os advogados têm direito ao adiamento dos actos processuais em que devam intervir após o nascimento de filho, adiamento que no primeiro mês não deve ser inferior a dois meses nos processos não urgentes, reduzindo-se a duas semanas nos processos urgentes. Trata-se de uma protecção já de si muito insuficiente no caso das Advogadas, mas infelizmente nem essa protecção está a ser reconhecida nos nossos Tribunais.

Efectivamente, no passado mês de Julho uma Advogada foi obrigada por um Juiz do Juízo de Família e Menores de Aveiro a comparecer no tribunal ou a fazer-se substituir por outro Colega nove dias depois de ter dado à luz, apesar de ter pedido um adiamento, que foi recusado pelo Juiz. Essa Advogada estava aliás ainda internada em virtude do parto à data da notificação do Tribunal estando, por isso, comprovadamente sem condições para se ausentar de junto do seu filho recém-nascido, que necessitava dos cuidados e da atenção da sua mãe. Por esse motivo requereu o adiamento com base no Decreto-Lei n.º 131/2009 de 1 de Junho, tendo, no entanto, o tribunal indeferido esse pedido por considerar que a assistência por advogado não era obrigatória e que a Advogada poderia substabelecer noutro Advogado. É difícil conceber maior desconsideração da protecção da maternidade e da função dos Advogados do que dizer a uma Advogada que não precisa de estar presente, ou que deve mandar outro Colega em seu lugar, o qual obviamente nunca acompanhou o processo e não o conhece adequadamente para exercer a representação do seu constituinte de forma eficaz.

A Advogada em questão apresentou queixa desta decisão judicial à Ordem dos Advogados, que manifestou de imediato o seu veemente repúdio pela mesma, quer junto do Conselho Superior da Magistratura, quer junto da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. Efectivamente, esta decisão constitui uma clara violação da lei e das prerrogativas dos Advogados e um atentado aos direitos fundamentais de igualdade e não discriminação em função da maternidade. 

Infelizmente, no entanto, a posição do Conselho Superior de Magistratura foi a de que “o adiamento das diligências assim fundado não pode, porém, ser visto em termos absolutos, tendo de ceder, ou pelo menos, de ser comprimido ou devidamente adaptado quando possa colidir ou comprometer outros valores também dignos de consideração, como é inegavelmente o caso da própria realização da justiça”. Julgávamos não ser possível no Portugal do séc. XXI um órgão do Estado entender que a protecção das mulheres pode ser comprimida em benefício de outros valores e que é lícito dizer a uma mulher puérpera para se apresentar em Tribunal nove dias após o parto, sabendo-se de todos os constrangimentos e riscos que isso representa para a própria e para o seu filho.

Infelizmente, no entanto, este não é caso único. Depois de se tomar conhecimento do mesmo, chegaram ao conhecimento da Ordem dos Advogados outras denúncias de situações passadas em que Advogadas foram obrigadas a fazer julgamentos poucos dias após o parto, mesmo por cesariana, amparadas pelos seus maridos, que ficavam com a criança ao lado, para que a mãe a pudesse amamentar em caso de necessidade.

A imagem da Justiça pode ser cega, ninguém pode deixar de ver o que esta situação representa. Existe aqui uma manifesta violação dos direitos e prerrogativas dos Advogados e da protecção constitucional da maternidade, a que qualquer cidadã tem direito. Por isso a Ordem dos Advogados irá denunciar a situação que foi criada a esta Advogada aos diversos Grupos Parlamentares, à Provedoria de Justiça e às diversas instâncias internacionais com competência na área da igualdade e não discriminação.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

A falta de protecção da maternidade nos nossos tribunais


Julgávamos não ser possível no Portugal do séc. XXI um órgão do Estado entender que a protecção das mulheres pode ser comprimida em benefício de outros valores e que é lícito dizer a uma mulher puérpera para se apresentar em Tribunal nove dias após o parto.


O art. 68º, nº3, da Constituição estabelece que “as mulheres têm direito a especial proteção durante a gravidez e após o parto, tendo as mulheres trabalhadoras ainda direito a dispensa do trabalho por período adequado, sem perda da retribuição ou de quaisquer regalias”. Em execução dessa disposição, o art. 2º do Decreto-Lei 131/2009, de 1 de Junho, estabelece que os advogados têm direito ao adiamento dos actos processuais em que devam intervir após o nascimento de filho, adiamento que no primeiro mês não deve ser inferior a dois meses nos processos não urgentes, reduzindo-se a duas semanas nos processos urgentes. Trata-se de uma protecção já de si muito insuficiente no caso das Advogadas, mas infelizmente nem essa protecção está a ser reconhecida nos nossos Tribunais.

Efectivamente, no passado mês de Julho uma Advogada foi obrigada por um Juiz do Juízo de Família e Menores de Aveiro a comparecer no tribunal ou a fazer-se substituir por outro Colega nove dias depois de ter dado à luz, apesar de ter pedido um adiamento, que foi recusado pelo Juiz. Essa Advogada estava aliás ainda internada em virtude do parto à data da notificação do Tribunal estando, por isso, comprovadamente sem condições para se ausentar de junto do seu filho recém-nascido, que necessitava dos cuidados e da atenção da sua mãe. Por esse motivo requereu o adiamento com base no Decreto-Lei n.º 131/2009 de 1 de Junho, tendo, no entanto, o tribunal indeferido esse pedido por considerar que a assistência por advogado não era obrigatória e que a Advogada poderia substabelecer noutro Advogado. É difícil conceber maior desconsideração da protecção da maternidade e da função dos Advogados do que dizer a uma Advogada que não precisa de estar presente, ou que deve mandar outro Colega em seu lugar, o qual obviamente nunca acompanhou o processo e não o conhece adequadamente para exercer a representação do seu constituinte de forma eficaz.

A Advogada em questão apresentou queixa desta decisão judicial à Ordem dos Advogados, que manifestou de imediato o seu veemente repúdio pela mesma, quer junto do Conselho Superior da Magistratura, quer junto da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. Efectivamente, esta decisão constitui uma clara violação da lei e das prerrogativas dos Advogados e um atentado aos direitos fundamentais de igualdade e não discriminação em função da maternidade. 

Infelizmente, no entanto, a posição do Conselho Superior de Magistratura foi a de que “o adiamento das diligências assim fundado não pode, porém, ser visto em termos absolutos, tendo de ceder, ou pelo menos, de ser comprimido ou devidamente adaptado quando possa colidir ou comprometer outros valores também dignos de consideração, como é inegavelmente o caso da própria realização da justiça”. Julgávamos não ser possível no Portugal do séc. XXI um órgão do Estado entender que a protecção das mulheres pode ser comprimida em benefício de outros valores e que é lícito dizer a uma mulher puérpera para se apresentar em Tribunal nove dias após o parto, sabendo-se de todos os constrangimentos e riscos que isso representa para a própria e para o seu filho.

Infelizmente, no entanto, este não é caso único. Depois de se tomar conhecimento do mesmo, chegaram ao conhecimento da Ordem dos Advogados outras denúncias de situações passadas em que Advogadas foram obrigadas a fazer julgamentos poucos dias após o parto, mesmo por cesariana, amparadas pelos seus maridos, que ficavam com a criança ao lado, para que a mãe a pudesse amamentar em caso de necessidade.

A imagem da Justiça pode ser cega, ninguém pode deixar de ver o que esta situação representa. Existe aqui uma manifesta violação dos direitos e prerrogativas dos Advogados e da protecção constitucional da maternidade, a que qualquer cidadã tem direito. Por isso a Ordem dos Advogados irá denunciar a situação que foi criada a esta Advogada aos diversos Grupos Parlamentares, à Provedoria de Justiça e às diversas instâncias internacionais com competência na área da igualdade e não discriminação.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990