Na melhor nódoa cai o pano


Caro leitor propomos hoje um exercício espiritual que consiste em empregar na mesma frase as seguintes palavras, todas com domicílio legal no Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa: conceito, espaço, projecto, conquistas, foco, resiliente, icónico, incrível e adoro. 


O exercício permite recorrer a mais três palavras fora do conjunto proposto. A sugestão dicionarística serve para provar a distância entre o significado tradicional de determinadas palavras e os usos contemporâneos das mesmas. A distância crescente evolui muitas vezes para a contradição, nem sequer necessitando das versões compostas e inatamente contraditórias (“muito icónico”) ou da tomada de reféns a partir da língua franca contemporânea (o mau inglês falado pelos que o não têm como língua materna). 

O tema não é novo, em todas as épocas surgiram reacções de desagrado em relação às modernices, aos populismos, às expropriações de determinados níveis de uso da língua, tidos por elevados. A luta de classes e a guerra entre gerações há muito que têm a língua por campo de batalha. 

Naquele dramático ano de 1989 Nani Moretti encarnou o seu personagem fetiche, Michele Apicella, no filme Palombella Rossa. Vítima de uma entrevista feita com recurso à novilíngua dos jornalistas, Michele, depois de esbofetear a entrevistadora mal-falante, proclama: “Devemos ficar indiferentes às palavras de hoje! Quem fala mal, pensa mal. E vive mal.” Michele, funcionário do Partido Comunista Italiano, sofrendo, de acordo com o guião do filme, de amnésia, não poderia verbalizar a inversão dos termos da argumentação. No entanto a pauperização linguística permite compreender que quem vive mal também fala mal, sem ser preciso qualificar a qualidade do pensamento do falante.

O mal falar é facilmente acompanhado pelo mal escrever, sobremaneira numa sociedade em que a palavra escrita está sob ataque, provocado pela perda da unicidade da norma ortográfica (vítima do convívio no espaço e no tempo de normas contraditórias), pelo mau uso tecnológico da palavra escrita (as abreviaturas, a escrita sms, a proliferação de micro-imagens infantis que se substituem à palavra escrita) e pela ausência de hábitos de leitura por parte das novas gerações (o aumento do número de livros vendidos durante os confinamentos foi promovido pelos que já integravam a categoria dos leitores activos).

O mal falar é praticado pelos falantes de referência, os comunicadores televisivos, sejam os profissionais da informação sejam os do entretenimento, onde se inclui a categoria sempre em expansão dos actores, com usucapião da licença de porte de arma da língua sem o prévio tirocínio dado pela formação académica. No grupo dos falantes de referência sobrariam os profissionais da educação, admitindo que a pandemia do mal falar os não vitimou já.

Num país que se sobressalta anualmente com a artificialidade dos rankings das escolas secundárias seria muito útil aferir a proficiência linguística de toda a população. É perfeitamente possível medir a capacidade de interpretação de um texto simples, a capacidade de escrever o resultado de tal interpretação e, ousadia, a capacidade de comunicar oralmente tal interpretação. Não proponho o retomar do voto censitário com base nos resultados dos testes de aferição da capacidade de leitura, escrita e comunicação oral com base na língua portuguesa. Mas não seria má ideia reagir rapidamente contra a generalização do mal falar e das suas consequências, o mal pensar e o mal viver. Não deverá ser preciso um Almirante.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

Na melhor nódoa cai o pano


Caro leitor propomos hoje um exercício espiritual que consiste em empregar na mesma frase as seguintes palavras, todas com domicílio legal no Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa: conceito, espaço, projecto, conquistas, foco, resiliente, icónico, incrível e adoro. 


O exercício permite recorrer a mais três palavras fora do conjunto proposto. A sugestão dicionarística serve para provar a distância entre o significado tradicional de determinadas palavras e os usos contemporâneos das mesmas. A distância crescente evolui muitas vezes para a contradição, nem sequer necessitando das versões compostas e inatamente contraditórias (“muito icónico”) ou da tomada de reféns a partir da língua franca contemporânea (o mau inglês falado pelos que o não têm como língua materna). 

O tema não é novo, em todas as épocas surgiram reacções de desagrado em relação às modernices, aos populismos, às expropriações de determinados níveis de uso da língua, tidos por elevados. A luta de classes e a guerra entre gerações há muito que têm a língua por campo de batalha. 

Naquele dramático ano de 1989 Nani Moretti encarnou o seu personagem fetiche, Michele Apicella, no filme Palombella Rossa. Vítima de uma entrevista feita com recurso à novilíngua dos jornalistas, Michele, depois de esbofetear a entrevistadora mal-falante, proclama: “Devemos ficar indiferentes às palavras de hoje! Quem fala mal, pensa mal. E vive mal.” Michele, funcionário do Partido Comunista Italiano, sofrendo, de acordo com o guião do filme, de amnésia, não poderia verbalizar a inversão dos termos da argumentação. No entanto a pauperização linguística permite compreender que quem vive mal também fala mal, sem ser preciso qualificar a qualidade do pensamento do falante.

O mal falar é facilmente acompanhado pelo mal escrever, sobremaneira numa sociedade em que a palavra escrita está sob ataque, provocado pela perda da unicidade da norma ortográfica (vítima do convívio no espaço e no tempo de normas contraditórias), pelo mau uso tecnológico da palavra escrita (as abreviaturas, a escrita sms, a proliferação de micro-imagens infantis que se substituem à palavra escrita) e pela ausência de hábitos de leitura por parte das novas gerações (o aumento do número de livros vendidos durante os confinamentos foi promovido pelos que já integravam a categoria dos leitores activos).

O mal falar é praticado pelos falantes de referência, os comunicadores televisivos, sejam os profissionais da informação sejam os do entretenimento, onde se inclui a categoria sempre em expansão dos actores, com usucapião da licença de porte de arma da língua sem o prévio tirocínio dado pela formação académica. No grupo dos falantes de referência sobrariam os profissionais da educação, admitindo que a pandemia do mal falar os não vitimou já.

Num país que se sobressalta anualmente com a artificialidade dos rankings das escolas secundárias seria muito útil aferir a proficiência linguística de toda a população. É perfeitamente possível medir a capacidade de interpretação de um texto simples, a capacidade de escrever o resultado de tal interpretação e, ousadia, a capacidade de comunicar oralmente tal interpretação. Não proponho o retomar do voto censitário com base nos resultados dos testes de aferição da capacidade de leitura, escrita e comunicação oral com base na língua portuguesa. Mas não seria má ideia reagir rapidamente contra a generalização do mal falar e das suas consequências, o mal pensar e o mal viver. Não deverá ser preciso um Almirante.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990