“O nosso protesto correu muito bem. Acabámos há pouco porque está a ficar frio e a maioria das pessoas já entrou e, por isso, já desmobilizámos. Distribuímos panfletos, tínhamos cartazes e faixas. Houve muitas pessoas que se aproximaram para tentar perceber aquilo que se passava. Não estamos contra as pessoas que são consideradas nómadas digitais, colocamos é uma crítica às políticas: às que incentivam a vinda de pessoas endinheiradas, sobretudo, que consomem habitação”, começa por dizer, em declarações ao i, Rita Silva, da Habita65 – Associação pelo Direito à Habitação e à Cidade, entidade que se manifestou à entrada da Web Summit, no primeiro dia do evento, esta terça-feira, contra os benefícios para nómadas digitais.
“E os vistos para os nómadas digitais somam para os vistos gold que não acabaram, o governo é que diz isso. Os residentes não habituais, o regime fiscal de atração de gente endinheirada a troco de uma quase isenção de impostos… Enfim, e agora temos um visto para pessoas que ganham quase 3 mil euros por mês. E vemos números, por exemplo, como o facto de querermos atrair milhares de nómadas digitais por mês… Isto vai gerar um crescendo de desigualdade”, explica, lembrando que aproximadamente 80% dos quartos destinados a estudantes universitários “foram transferidos para o mercado do turismo”.
“Estas pessoas pagam muito mais do que nós podemos pagar e manterão os preços muito elevados. Estas políticas favorecem a manutenção dos preços elevados e são conscientes, não são efeitos colaterais. O que se fez, ao longo dos últimos anos, foi virar o mercado imobiliário para o exterior e desconectar daquilo que é o rendimento dos portugueses. Não temos qualquer tipo de discurso contra os estrangeiros e preocupa-nos que estas políticas gerem xenofobia”, acrescenta Rita, frisando que “a narrativa do governo e das pessoas, no geral, é de que temos de atrair pessoas com dinheiro para Portugal e que dinheiro é sempre bom”. “Não, fazê-lo não é sempre bom. Promove o turismo, mas traz desigualdade, inflaciona o preço dos bens, etc. Portanto, temos de parar de pensar assim e os órgãos de informação e associações como a nossa têm um papel essencial nesta mudança de paradigma”, salienta.
“Estamos no contexto de inflação elevada, créditos e hipotecas aumentados, rendas com aumento de mais de 40%, poucas casas a menos de 1000 euros em Lisboa… ‘Vem dinheiro, vem dinheiro’? Para alguns! Temos de ponderar que tipo de futuro queremos para o país. O governo e a CML têm dado 11M à Web Summit nos últimos anos, quatro suportados pela CML, e, nos últimos 10, houve 0 para a habitação ao nível das políticas públicas de habitação”, critica, constatando que “agora vem aí alguma coisa com o Plano de Recuperação e Resiliência”.
“Mas, desde a crise financeira internacional de 2008, o orçamento para a habitação era 0. O impacto é mau. Temos uma mulher, no nosso protesto, que vai ser despejada a partir de dia 9 de novembro. Recebemos cada vez mais pessoas desesperadas que não conseguem pagar a renda ou escolhem entre comer e pagar a renda. Desesperada, ocupou uma casa pública que estava vazia há anos e agora vai ser despejada. Ela e mais 800 mulheres, em Lisboa, com filhos”, sublinha, revoltada e com a tristeza patente na voz.
Essa mulher é Liliana Marques, de 32 anos, mãe da pequena Camila, de seis. “Estou desempregada, o meu marido tem uma doença crónica, e daqui a 15 anos estará numa cadeira de rodas. Ocupei uma casa, recebi uma ordem de despejo, pus uma providência cautelar, recebi a ordem da juíza, tenho de abandonar a casa até 9 de novembro”, declara ao i, lamentando que “a PSP ou a CML”, sendo que ainda não entendeu, tenha sinalizado Camila “por uma questão habitacional”.
“Tenho sofrido muito com isso, até tentei suicidar-me. Tenho provas disso. Não acho nada disto justo. Mais depressa devia ter ajuda se a sinalizaram. Querem que vá para a rua. Vou lutar até não ter fôlego. A habitação está esquecida e o senhor Presidente Carlos Moedas foi eleito com mais de 1/3 dos votos do ‘lixo da sociedade’, não é?”, questiona, referindo-se aos lisboetas. “E quando o questionei, há dois dias, no meu Instagram, ele respondeu que deu 40M à Administração da Gebalis para construir novas habitações. Disse-lhe que devia questionar onde estaria esse dinheiro e há milhares de casas fechadas. Eu guardo screenshots de tudo e ando a ver que casas estão fechadas. Nem sequer há respostas para famílias com crianças”.
“Na semana passada, três famílias com sete crianças, no total, foram postas na rua. Quem é que não se sensibiliza com isto!?”, pergunta, alarmada. “É impressionante. A classe baixa está esquecida. O meu marido vai trabalhar conforme pode, uma semana, por exemplo, e fica em casa dois meses porque os tendões se estão a deteriorar. Vamos sobrevivendo. Não temos ajuda nenhuma!”, lastima. “Eu tenho depressão. E não é ser xenofóba, como me chamaram, mas ajudem os portugueses primeiro: não temos nada a dar a ganhar, não é? Tanto Portugal como a UE não querem saber de nós para nada”, denuncia, afirmando que na zona da Alta de Lisboa, onde reside atualmente, a sua família e outras 48 serão despejadas das habitações até ao final do ano.
“Eu sou uma Zé-ninguém, não tenho poder de dizer basta, mas os jornalistas têm: ajudem-nos, por favor. O Senhor Presidente Carlos Moedas prometeu que nos ajudaria, mas foram promessas vãs”, conclui com desilusão à entrada de um dos maiores eventos do país que, segundo dados divulgados pela ministra da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, há uma semana, à margem do II Encontro Nacional NPISA – Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo, que decorreu em Leiria, tem nove mil pessoas em situação de sem-abrigo. Destas, quatro mil não têm teto e vivem na rua.
Nos últimos três anos, saíram desta situação 1700 pessoas. Deste número, aproximadamente 450 pessoas viviam nas ruas da capital. Contudo, em maio de 2022, o Nascer do SOL noticiava que havia mais de 8 mil pessoas em situação de sem-abrigo em Portugal. Mais exatamente 8.209, sendo que este número havia sido revelado, no final do mês de setembro, pelo portal da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA), que tinha dados atualizados de 275 concelhos até ao dia 31 de dezembro de 2020.
De acordo com a ENIPSSA, a Área Metropolitana de Lisboa (AML) era a zona que concentrava o maior número de pessoas em situação de sem-abrigo no país: 3.665 sem casa e 1.121 sem teto. A grande maioria (4.786) estava localizada no concelho de Lisboa, mas esta situação não ocorria apenas na capital: quando considerado o número de pessoas em situação de sem-abrigo (PSSA) por mil habitantes, o concelho de Alvito, em Beja, liderava a lista, com 11,35 PSSA por mil habitantes e seguia-se Beja, com 9,72.
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