Ozempic. “Devemos ou não devemos pensar nisto como tratamento para a obesidade?”

Ozempic. “Devemos ou não devemos pensar nisto como tratamento para a obesidade?”


Totalmente esgotado nas farmácias e/ou a levar à criação de dezenas ou mesmo centenas de encomendas nas mesmas, o Ozempic, inicialmente criado para diabéticos, tem vindo a ganhar popularidade entre quem tem excesso de peso devido às celebridades e redes sociais. O jornal ouviu médicos e doentes.


As irmãs Kim e Khloé Kardashian e Elon Musk são apenas três exemplos de celebridades que aparecem cada vez mais magras publicamente. A diferença? As primeiras não explicam o motivo, enquanto o segundo assume que injeta o Wegovy, o Ozempic que foi aprovado para o tratamento da obesidade. Mas, além de quem tem dinheiro, fama e poder, influencers e pessoas consideradas ‘normais’ também podem ser vistas em redes sociais, principalmente no TikTok, a injetarem semaglutido na barriga e a dizerem maravilhas acerca deste medicamento que parece ser um milagre nas suas vidas. Será que tudo funciona mesmo assim?

Paula tem 48 anos e, desde que se recorda de ver o reflexo da sua imagem, nunca gostou do mesmo. Sempre teve excesso de peso e, depois de ter tido os dois filhos, hoje adolescentes, considera que rapidamente se tornou obesa. “Ganhei peso, muito peso mesmo. Falava com os médicos e diziam para comer menos. E eu tentava fazer isso, mas depois tinha episódios de compulsão terríveis e comia o dobro, o triplo, o quádruplo…”, diz, lamentando os dias em que “estragava” aqueles de dieta “certinha” que havia feito. “Percebi que isso não funcionava e achei que certas dietas que são muito famosas agora e que se veem nas farmácias poderiam ajudar-me, mas cometi outro erro. O peso máximo que perdi foi de 15kg com uma delas, passei meses a beber drenantes e a tomar comprimidos, e ganhei 20kg pouco tempo depois”.

Mas, quando já tinha perdido a esperança, tendo em conta tantos anos de luta, lágrimas e autoestima reduzida, Paula ouviu falar do Ozempic. “Li algumas notícias sobre o Semaglutido, todas em inglês, e achei que me poderia ajudar. Por isso, falei com o meu endocrinologista, porque, entretanto, achei que precisava de acompanhamento médico, no início do ano, e ele prescreveu-mo. Eu não sou diabética, não tenho a glicemia descontrolada, mas não acho que deva privar-me deste medicamento por esse motivo”, avança, explicando que perdeu 20kg desde fevereiro. Este valor pode parecer reduzido, mas, para Paula, é uma grande conquista.

“Nunca consegui perder tanto peso e mantê-lo. E tenho a certeza de que muitas mais pessoas concordam comigo. Bem sei que os diabéticos não podem ficar sem este medicamento, mas eu também não”, sublinha, não se alinhando com Maria Amélia, de 67 anos, diagnosticada com diabetes há cinco e que compra o Ozempic por aproximadamente 12 euros com a comparticipação do Estado. Tomou outra medicação primeiro, pois o semaglutido só foi disponibilizado em território nacional a partir do dia 1 de maio de 2021, sendo, à época, descrita pelo Jornal Médico como uma “solução injetável em caneta pré-cheia utilizada no tratamento de adultos com diabetes mellitus tipo 2 insuficientemente controlada”.

“Eu não vivo sem este medicamento. Percebo que muita gente queira emagrecer, mas pensem em nós primeiro. Já cheguei a pedir a amigas que vivem no Norte para comprarem o Ozempic lá e enviarem-mo pelo correio. O meu filho, que vive em Setúbal, já mo trouxe, até Lisboa, várias vezes. As coisas não podem funcionar assim”, desabafa a idosa que sofre de diabetes tipo 2 e necessita do medicamento comercializado e comparticipado para diabéticos, sendo que, atualmente, quem padece de obesidade está a usufruir deste fármaco sem ter, na maior parte das vezes, um diagnóstico de diabetes. “O Estado tem de pôr mão nisto porque senão vai ser uma desgraça”, realça a mulher, lamentando que seja esta a realidade vivida no país.

“Tem de ser o Infarmed a posicioná-lo de outra forma: tem de se repensar onde se posicionam os medicamentos para a obesidade e como se faz essa comparticipação. É como os doentes oncológicos. As outras pessoas não beneficiam dessas comparticipações”, observa uma médica especialista em Medicina Interna que preferiu não ser identificada. “O Ozempic e os restantes produtos estão comparticipados ou isentos ao abrigo da diabetes e quem não tem a doença não pode beneficiar disto. Quem tiver obesidade e diabetes, pode usar. Entre outras coisas, contribui para a perda de peso. Nos EUA há uma liberalização e legislação diferentes e tal dá azo a que isto aconteça. Esteve esgotado no verão, nomeadamente em agosto, mas neste momento está disponível”, indica, declarando que as farmácias “não têm um enorme stock, não é um medicamento que esteja disponível facilmente, pode ter de se aguardar uns dias”.

“Independentemente das razões que possam levar à procura dos medicamentos, as pessoas com diabetes não podem ficar privadas do acesso ao medicamento. Primeiro, têm de estar elas e depois as restantes. Aqui, entramos em aspectos éticos e legais muito importantes. Há vários medicamentos da mesma classe com os mesmos benefícios, mas os vídeos que foram surgindo nas redes sociais levaram a que se tornassem mais conhecidos”, aponta, indo ao encontro da opinião partilhada por Carlos Oliveira, presidente da direção da Associação de Doentes Obesos e Ex-Obesos de Portugal.

“Há muito tempo, há mais de três anos, sabemos que os glutidos são um princípio ativo muito bom para ajudar na perda de peso desde que as pessoas sejam acompanhadas. Liraglutido, semaglutido, etc. O que se passa é que Hollywood criou uma moda e as modas têm os exageros todos que sabemos. Estamos a falar de um produto que para o cidadão português só é barato quando é comparticipado e nos EUA é vendido normalmente”, avança. “Os ordenados não têm nada a ver com os nossos e nem sequer precisam de receita médica lá. E o que acontece é aquilo que vemos nas redes sociais, perfeitas aberrações”, afirma, constatando que o Governo português “anda há mais de um ano” a preparar a criação do subgrupo de medicamentos para tratamento da obesidade.

“As empresas nem sequer podem fazer o pedido de comparticipação. Acham que as pessoas com excesso de peso vão todas usar o medicamento. Há regras para tratar a obesidade por via cirúrgica e tem de haver por via farmacológica. Tem de haver uma adenda a uma portaria e o Governo e o Infarmed não a fazem. O Governo reconhece a obesidade como uma doença desde 2004, protela os fármacos há anos: isto não faz sentido!”, realça o dirigente da associação que se autodefine como uma entidade que foi “criada para garantir os direitos dos seus associados a tratamentos e seguros, apoiá-los a vários níveis, lutar contra a discriminação de que são alvo e trabalhar na área da prevenção nomeadamente ao nível das camadas infantis e juvenis”.

“Mas é a realidade que temos neste momento. Mesmo as pessoas que estão no Infarmed e no Governo sabem pouco sobre esta doença. A maioria destas pessoas são resistentes à lectina. Isto está tudo identificado em revistas científicas. E, portanto, só em situações extremas é que conseguem queimar gordura. Tentam encontrar medicamentos que possam ultrapassar esta inflamação”, adianta, lastimando que a maioria das pessoas ainda pense que esta é uma doença comportamental: ou seja, que existe somente porque a pessoa come em excesso.

“Uma pessoa, quando chega a uma consulta, pede ajuda porque já fez milhares de coisas. Há uma coisa que é importante dizer: é mesmo uma doença. A obesidade provoca diabetes, doenças cardiovasculares, etc. A patologia não deve ser tratada primeiro?”, questiona. “Em Portugal, remendamos as coisas primeiro e não investimos a sério no tratamento da obesidade. E no estudo de 2018 percebemos que 1,2 mil milhões de euros por ano deviam ser investidos no tratamento e nem chegamos lá perto”, diz o homem que foi submetido a uma cirurgia bariátrica há 20 anos e perdeu 56kg.

“Precisamos de multivitamínicos que o Governo também não quer comparticipar. Deixamos de conseguir absorver determinadas coisas vitais. Custa 20 e tal, 30 euros. Se não o tomarmos, temos problemas de visão, falta de força, etc. O Governo diz que o Infarmed não pode aprovar porque o Ministério da Agricultura diz que se pode comer em vez de tomar o polivitamínico. Não é considerado um fármaco. Há uma recomendação ao Governo, feita pela Assembleia da República, a dizer isto tudo”, frisa, salientando que, de um lado, existe a perspetiva da prevenção porque os casos da obesidade infantil estavam a descer antes da pandemia, a realização das cirurgias bariátricas comparticipadas a cem por centro e, por outro, uma lista de espera longa para essas mesmas intervenções e “no meio pessoas sem apoio nenhum”.

 

“Existe aqui alguma promiscuidade na prescrição”

“Temos de retomar a discussão sobre o tratamento da obesidade. Até agora, tínhamos o quê? A cirurgia, numa fase final, e, portanto, uma solução para formas extremas de obesidade que são muito problemáticas. Depois, as indicações foram ficando para pesos menos extremos e as listas de espera foram aumentando”, começa por dizer João Filipe Raposo, diretor clínico da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP).

“As mudanças de estilo de vida têm tido investimentos mínimos, não aumentamos nas causas. E, portanto, surge a diabetes tipo 2. Temos uma sequência mais ou menos lógica. Este medicamento, e outros, foram inicialmente descobertos para a diabetes, mas são associados a uma grande perda de peso. E isso contribui para que não haja um agravamento da patologia. Estes medicamentos funcionam igualmente em quem não é diabético. Devemos ou não devemos pensar nisto como tratamento para a obesidade?”, pergunta, referindo-se ao semaglutido, que foi desenvolvido em 2012 por uma equipa de investigadores da Novo Nordisk como uma alternativa de ação mais longa ao liraglutido como terapia para a diabetes uma vez por semana (e não diária).

“As pessoas não estão à vontade para não fazer exercício ou comer. A obesidade não se resolve com uma injeção. E, por isso, a perspetiva dos custos assusta qualquer governo. O tratamento farmacológico pode ser uma possibilidade, mas tem de ser discutida a comparticipação”, repara o médico na Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (1997 – ) e consultor de Endocrinologia/Nutrição (2002) que exerceu funções enquanto professor auxiliar convidado de Saúde Pública da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, assim como docente da Pós-Graduação em Diabetes da Universidade Nova de Lisboa/APDP.

“E o que acontece às pessoas com diabetes tipo 2? Há três moléculas diferentes, mas isto provocará alguma instabilidade no controlo, mais consultas… No ponto de vista dos recursos, poderá levar a gastos extra. E, depois, o que custará? Falamos muito no preço do medicamento, mas todo o mecanismo da negociação do preço e um eventual tecto… Se calhar, as companhias farmacêuticas estarão a pagar também”, salienta o profissional de saúde. “Temos de pensar se devemos comparticipar para a obesidade e refletir acerca do preço final. Há modelos de financiamento mais inovadores. Isto corresponde a um sonho: o acesso à comida, o sedentarismo… Parece a solução mais simples. Um tratamento adjuvante mas, para isso, teria de haver um enquadramento”.

“É óbvio que os fármacos, em Portugal, para a diabetes e para outra patologia, demoram muito mais tempo a entrar no mercado porque tem muito a ver com os sistemas de saúde e comparticipação. Temos a FDA na América e a EMA na Europa. Depois, outro passo é decidir se o medicamento tem comparticipação ou não e em que medida. Dois ou três anos depois, chegam até nós, tal como o Ozempic”, raciocina Mafalda Marcelino, endocrinologista e secretária-geral da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo.

“O princípio ativo está não só aprovado para o tratamento da diabetes como da obesidade. Existem o Ozempic, cuja dose está indicada para a diabetes, e outro que ainda não temos em Portugal, de dose superior, indicado para a obesidade. Do ponto de vista médico, não está mal prescrito, mas do ponto de vista institucional, estamos a fazer com que pessoas sem diabetes usufruam desta comparticipação”, explicita a também diretora do Serviço de Endocrinologia do Hospital das Forças Armadas que, num comunicado emitido ontem, juntamente com os restantes membros da direção daquela entidade, deixou claro quais são os benefícios do Ozempic.

“É um medicamento que mimetiza as hormonas que regulam a sensação de saciedade, podendo promover perdas de peso de cerca de 15%. Para além do seu benefício na perda ponderal, este fármaco apresenta um perfil de proteção cardiovascular, reduzindo o número de eventos (sobretudo acidentes vasculares cerebrais) e de risco de morte cardiovascular. Permite ainda uma redução da progressão da pré-diabetes para a diabetes”, lê-se no texto enviado aos órgãos de informação, sendo que, ao i, lembra que “as doenças são comparticipadas de forma diferente” e, por isso, quanto ao Ozempic, “existe aqui alguma promiscuidade na prescrição: não no sentido de estar errada no sentido médico”, mas “quando é prescrito em larga escala, o laboratório não está pronto para produzir tanto, há rutura e os diabéticos ficam sem este medicamento”.

“A Sociedade de Endocrinologia é a favor de que haja comparticipação para a obesidade, mas temos de definir quem pode usar este medicamento e que médicos podem prescrevê-lo. Por exemplo, existem fármacos que somente podem ser prescritos por neurologistas e psiquiatras. As coisas têm de ser reguladas e não temos de contornar leis e regras”, elucida a endocrinologista que atua principalmente nas Patologia Tiroideia, Diabetes, Obesidade, Paratiroides (metabolismo fosfo-cálcico), Supra-Renal, Hipófise e Patologia ovárica.

“O Ozempic é para o tratamento da diabetes, o princípio ativo serve para a redução do peso, mas não deve servir para isso. Só quando um doente tiver obesidade e diabetes. 90% dos diabéticos tem excesso de peso ou obesidade, temos de ter atenção a isso, mas se um doente for obeso e não tiver diabetes… Existem o Victoza e o Saxenda, doses diferentes, mas não há comparticipação para o segundo. E o custo é de 135 euros por mês. É pouco acessível para a maioria das pessoas”, considera, recordando que quando surgiu o Victoza, no mercado, “houve um efeito parecido com este, mas muito menor”.

“Este é o resultado das redes sociais, da difusão. A própria companhia que produz estes fármacos atribui nomes diferentes aos medicamentos exatamente para contornar a promiscuidade. Wegovy é o nome do medicamento que será o Ozempic para a obesidade, por exemplo. Até há pouco tempo, não tínhamos terapêutica para a obesidade e o Estado não prevê a sua comparticipação. E temos um segundo problema: mesmo que existisse, terão de ser definidos graus de obesidade e comorbilidades”, salienta, sendo que, de acordo com o Serviço Nacional de Saúde, a obesidade começa no índice de massa corporal (IMC) de 30kg/m2, a classe 1 encontra-se entre os 30 e os 34,9kg/m2, a 2 entre os 35 e os 39,9kg/m2 e a 3 a partir dos 40kg/m2.

“Prevê-se que existam 2,5 milhões de pessoas com obesidade em Portugal e não poderíamos dar estes medicamentos a todas. E tem de haver supervisão para ver se tudo é cumprido. Entendo que haja médicos que tenham um bom intuito com a prescrição do Ozempic a quem não é diabético, mas isto será uma chamada de atenção. Tem de se olhar para a obesidade e regular toda essa componente. As duas patologias estão muito interligadas, mas há obesos que não são diabéticos”, finaliza a médica.

“Está na moda o tratamento e nas notícias também: e não só em sites nacionais. Em Portugal, existe o semaglutido que está aprovado única e exclusivamente para tratamento da diabetes tipo 2 e é para esse fim que o tratamento é aprovado a 90%. É de prescrição médica obrigatória. Esta vulgaridade com que se olha para a substância… Há medicamentos de venda livre e as pessoas podem comprar aquilo que querem, mas aqui estamos a falar de um fármaco específico”, assevera José Silva Nunes, especialista do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central e presidente da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade.

“Não tem indicação para o tratamento sem diabetes tipo 2. É verdade que é comercializado, noutros países, com outras dosagens, para tratamento de obesidade. Se a pessoa tiver obesidade e diabetes, será um fármaco a equacionar, estaremos a atuar on label segundo as indicações. Se não for esse o caso, não há indicação. Todos os contribuintes pagam este fármaco. Mas reconheço que há muitas pessoas a utilizar off label, é uma realidade reconhecida, porque haverá alguém que lhes prescreve essa receita”, garante, espelhando o caso de Paula. “A indicação e a comparticipação não existem para pessoas sem diabetes. O problema é que, havendo reconhecimento de que é um fármaco que promove a perda de peso e passou a ser utilizado off label pelas pessoas… Não há valores de quantas estão a fazer off label, mas espero que a maioria esteja a fazer dentro das indicações”, apela à população e aos médicos o profissional responsável pelas consultas de Endocrinologia Geral, Tumores hipofisários, Diabetes Mellitus, Bombas perfusoras de insulina e Diabetes e Transplantes.

“Há escassez e praticamente inexistência do fármaco quer para pessoas que já o faziam quer para quem tem indicação agora e não o pode iniciar pela indisponibilidade. Cada vez há mais pessoas a fazê-lo e o problema vai agudizando-se. O peso deve ser combatido nas pessoas com diabetes tipo 2 e se temos este fármaco estamos a tratar este aspeto tão importante. Até porque não só em termos etiológicos a obesidade é um dos fatores para desenvolvimento da diabetes tipo 2: uma vez que esteja desenvolvida nessa pessoa, a perda de peso leva a que a diabetes melhore. O controle metabólico torna-se facilitado. Todas as pessoas que beneficiariam do fármaco e que não podem e todas aquelas que já o fariam e face à escassez correm todas as farmácias e não o encontram e somos bombardeados pelas pessoas que nos perguntam o que devem fazer porque não o encontram. Não temos nenhuma resposta para essa pergunta. Também se nota falta dos fármacos da mesma classe terapêutica”, conclui.