Poderá Jesus Cristo ter nascido numa gruta e não num estábulo, como diz o ‘Evangelho segundo S. Mateus’ e é comummente aceite? Esta velha e persistente tradição parece ser sustentada pela existência, em Belém (Palestina), da Gruta da Natividade, no topo da qual foi construída a Igreja com o mesmo nome.
E contém em si um paralelismo sedutor, uma daquelas repetições recorrentes nos textos sagrados. Tal como viria a ser sepultado numa gruta (túmulo esse que, por sua vez, evocava uma espécie de segundo ventre materno, onde ressuscitaria para a vida eterna), Jesus teria também teria nascido numa gruta. «Levanta a pedra e aí me encontrarás», terá dito o Messias. Nascimento e morte ecoam-se, repercutem-se e confundem-se – tal como, aliás, o facto de ser filho de um carpinteiro se afigurava já como um prenúncio sinistro da sua morte violenta na cruz de madeira.
O nascimento de Jesus numa gruta encontra-se relatado no ‘Evangelho de Tiago’, de autoria e datação incertas, um dos textos agora reunidos no volume Evangelhos Apócrifos Gregos e Latinos (ed. Quetzal): «E os magos partiram, e eis que a estrela que viram no Oriente os levou até que entraram na gruta; e parou por cima da entrada da gruta. E os magos viram o menino com a mãe dele, Maria. E tiraram da bagagem deles ofertas: ouro e incenso e mirra».
Estes Evangelhos Apócrifos são mais um fruto da formidável parceria entre o classicista e tradutor Frederico Lourenço e o editor Francisco José Viegas. «Enquanto está a traduzir os dois últimos volumes da Bíblia Grega – o quinto volume está a dar especial trabalho –, para se distrair, o Frederico voltou aos Evangelhos. Não os quatro Evangelhos canónicos, mas redescobriu o prazer de ler em latim e em grego os Evangelhos Apócrifos», explicou o editor da Quetzal na apresentação das novidades do grupo Bertrand, no início de setembro.
Na ‘Nota Introdutória’ a este volume, Lourenço explica que, apesar da conotação negativa que lhe atribuímos intuitivamente, a palavra ‘apócrifo’ significava originalmente ‘secreto’ ou ‘escondido’. O que só torna tudo mais interessante.
‘Absurdos e ímpios’
Se é verdade que alguns destes textos (o tradutor dá o exemplo dos evangelhos sobre a infância de Maria e de Jesus) «foram lidos, copiados e traduzidos na Antiguidade Tardia e na Idade Média, sem nunca terem sido alvo da reprovação com que os textos de teor gnóstico foram estigmatizados», também é um facto que, já no final do século II, Ireneu, bispo de Lyon, defendia não poder haver mais nem menos do que quatro evangelhos, tal como havia «quatro ventos».
Cerca de um século depois, Eusébio de Cesareia, autor de uma consagrada História da Igreja, distinguia entre os «escritos que, de acordo com a tradição da Igreja, são verdadeiros e genuínos e reconhecidos, e aqueles que diferem deles na medida em que não são incluídos no Testamento, mas discutidos». Eusébio (citado por John Barton em Uma História da Bíblia, ed. Temas & Debates) ia mais longe na sua invetiva contra livros como os evangelhos de Pedro, de Tomé e de Matias, entre outros: «Ninguém que pertencesse à sucessão de eclesiásticos alguma vez pensou que seria correto referir nos seus textos algum destes. Além disso, o caráter do estilo está também muito distante do uso apostólico e o pensamento e o alcance dos seus conteúdos estão, por completo, fora da harmonia com a verdadeira ortodoxia e, claramente, mostram ser falsificações dos heréticos. Por esta razão, não deverão ser sequer contados entre os livros espúrios, mas sim absolutamente afastados como absurdos e ímpios», declarou.
Ímpios ou não, os Evangelhos Apócrifos constituem uma parte da história do Cristianismo que não pode ser amputada.
Os seus episódios circularam entre os crentes e constituíram uma importante fonte para a iconografia cristã. Vieram preencher um vazio deixado pelos textos canónicos e dar resposta à curiosidade dos cristãos sobre as vidas de Jesus e dos seus progenitores. Textos biográficos como o ‘Evangelho de Tomé sobre a Infância de Jesus’, a ‘Natividade de Maria’ ou a ‘História de José, o Carpinteiro’, sublinha Lourenço, «são importantes para a história do catolicismo e também para a compreensão da arte ocidental, pois a sua evocação está presente na pintura europeia desde a Idade Média até aos grandes mestres do século XVII. É neles que encontramos a explicação para a gruta de Belém no quadro de Giorgione (e de tantos outros pintores); para o boi e o burro da Natividade Mística de Botticelli (e dos presépios do mundo inteiro); para Cristo a descer aos infernos na representação de Bronzino; para a grandiosidade arquitetónica que rodeia, no Egito, a Sagrada Família na imaginação de Poussin; ou para a imagem comovente da apresentação de Maria, ainda menina, no templo – tema que inspirou Tintoretto a pintar um quadro de inultrapassável genialidade».
Jesus careca ou cabeludo?
E, por falar em representação, uma das muitas páginas fascinantes dos Evangelhos Apócrifos é a ‘Epístola de Lúcio Lêntulo’, um texto forjado na Idade Média, no qual este suposto funcionário romano se dirige ao imperador Tibério. Trata-se, nota o tradutor, da «única descrição pormenorizada, por escrito, da aparência física de Jesus».
Vejamos então o que diz o suposto funcionário romano ao imperador sobre o Messias:
«Um homem medianamente alto de estatura, bonito, tendo um rosto venerável que quem contempla pode amar e temer. Tem cabelos da cor da noz de avelã ainda não madura e lisos quase até às orelhas; das orelhas para baixo, são encaracolados e um pouco mais escuros e brilhantes e, a partir dos ombros, vaporosos; tem risco ao meio da cabeça, à maneira dos nazareus; e tem uma fronte lisa e sereníssima, com face sem ruga ou qualquer mácula, que um rubor embeleza. Do nariz e da boca não há crítica a fazer; tem uma barba farta, da mesma cor dos cabelos, não longa, mas um pouco ponteada no queixo; tem uma expressão simples e madura, com olhos esverdeados, brilhantes e claros; na irritação, é terrível; na admoestação, brando e amável; alegre, mas salvaguardando sempre a gravidade. Por vezes chorou, mas nunca se riu. Na estatura do corpo, é alto e direito».
Como refere Frederico Lourenço, no extremo oposto a esta descrição encontramos as palavras do filósofo grego Celso (autor de uma invetiva Contra os Cristãos), que descreve Jesus como «um homem feio no corpo e na voz», enquanto, continua o tradutor, «alguns textos da escritura cristã apócrifa nos retratam Jesus como homem baixo e – surpresa das surpresas – careca». Esta última configuração ocorre nos Atos de João, contrastando com a imagem habitual de um Cristo cabeludo.
Jesus e o sexo: uma questão espinhosa
Mas, como seria de esperar, há aspetos nos Evangelhos Apócrifos mais problemáticos do que a capilaridade de Jesus ou o seu nascimento numa gruta, que justificam a respetiva exclusão quase automática do cânone. O ‘Evangelho de Tomé sobre a Infância de Jesus’, por exemplo, mostra-o, logo em pequeno, a operar milagres. Alguns deles perturbadores. «Depois atravessava a aldeia; e um menino a correr embateu contra o ombro dele. E Jesus, irritado, disse-lhe: ‘Não continuarás o teu caminho.’ E logo, caindo, morreu. E alguns, vendo o sucedido, disseram: ‘Donde nasceu este menino, que toda a palavra dele seja facto consumado?’ E os pais do morto vieram e censuraram José, dizendo: ‘Tu com um menino assim não podes viver connosco na aldeia; ou então ensina-o a abençoar e a não amaldiçoar. Pois ele está a matar os nossos filhos.’»
Outra questão que tem gerado sempre controvérsia (ainda não dirimida) é a da existência de irmãos de Jesus. São referidos no Novo Testamento, mas há quem defenda que a expressão pode referir-se a ‘parentes’, como primos, não designando necessariamente filhos do mesmo pai ou da mesma mãe. Porém, segundo o ‘Evangelho de Tiago’, o pai de Jesus seria viúvo quando casou com a Maria. «Tenho filhos e sou velho. Ela é uma jovem. Que eu não me torne chacota para os filhos de Israel», teria dito José quando lhe foi comunicado que esposaria a Virgem. A ‘História de José, o Carpinteiro’, volta a referir esta condição de pai e viúvo. «Gerou para si filhos e filhas: quatro filhos e quatro filhas. Estes são os seus nomes: Judas, Justo, Tiago e Simão. Os nomes das duas filhas eram Ássia e Lídia». Segundo este testemunho, Jesus teria efetivamente irmãos, ou pelo menos meios-irmãos.
No ‘Evangelho de Nicodemos’, ou ‘Atos de Pilatos’, deparamo-nos com uma referência ainda mais problemática. Encontrando-se Jesus perante o governador da Judeia, «os anciãos dos Judeus» atiram-lhe: «Nós veremos o quê? Primeiro, que nasceste da prostituição». O que logo é refutado por «alguns pios entre os Judeus». Mas a acusação fica a pairar como uma sombra…
Já o Fragmento das ‘Grandes Questões de Maria’ contém algo que chocou os cristãos mais ortodoxos desde o século IV – e continua a chocar ainda hoje. Os dois protagonistas são Jesus e Maria Madalena. «Levando-a para a montanha e tendo orado, tirou do seu flanco uma mulher e começou a ter relações sexuais com ela. E tendo ele comido assim, de facto, a sua própria ejaculação, indicou: ‘É preciso proceder assim, para que vivamos.’ E porque Maria se agitou e desmaiou no chão, ele levantou-a novamente e disse-lhe: ‘Porque duvidaste, de pouca fé?’». É sem dúvida um Jesus diferente do Jesus casto a que nos habituámos.
O estatuto de Maria Madalena – que uns veem como uma santa, outros como uma prostituta regenerada e outros ainda como uma mulher rica que abandonou tudo para seguir Jesus – constitui ainda hoje um dos focos de discussão acesa entre cristãos. O ‘Evangelho de Pedro’ refere-a como «discípula do Senhor», o que implica que não havia apenas os doze apóstolos da ortodoxia. Ou seja, os ensinamentos de Jesus não constituíam um privilégio exclusivamente masculino.
No ‘Fragmento do Evangelho Místico de Marcos’ surge a narração de outro episódio que tem sido objeto de um debate acalorado. «E chegam a Betânia; e havia lá uma mulher, cujo irmão morrera. E aproximando-se, ela prostrou-se diante de Jesus e diz-lhe: ‘Filho de David, compadece-te de mim!’ Os discípulos repreenderam-na. E, encolerizado, Jesus foi com ela até ao jardim, onde estava o sepulcro. E logo se ouviu, a partir do sepulcro, um grito enorme.
E, aproximando-se, Jesus rolou a pedra da entrada do sepulcro; e, entrando depressa onde estava o jovem, estendeu a mão e levantou-o, agarrando com a mão.
O jovem, olhando para ele, amou-o; e começou a pedir-lhe que ficasse com ele. E, saindo do túmulo, foram para a casa do jovem. Pois ele era rico. E, após seis dias, Jesus deu-lhe ordens.
E, tendo caído a noite, o jovem vai ter com ele, vestido com um lençol sobre a nudez; e ficou com ele durante aquela noite. Pois Jesus ensinou-lhe o mistério do reino de Deus.»
Esta passagem, e em especial a expressão «nu sobre nu» (que segundo um comentador não constava do texto original) «suscitou uma bibliografia destemperada e, muitas vezes, raivosa», explica Lourenço, uma vez que poderia estar em causa uma alusão a nada mais, nada menos do que a um ato homossexual. Porém, conclui o tradutor: «Tudo isto constituiu um exagero enorme, porque não há, nas passagens citadas […] elementos objetivos que justifiquem a necessidade de rebater sugestões de sexo homossexual».
A palavra de Cristo
De todos os textos incluídos neste volume, o ‘Evangelho de Tomé’, redigido no século II ou mesmo no século I, é provavelmente aquele que mais tem interessado e ocupado os estudiosos. Se a palavra apócrifo se tornou quase sinónimo de ‘contrafação’, crê-se que esta coletânea de ditos possa ter realmente preservado as palavras autênticas de Cristo, o que não é coisa de pouca monta.
«A descoberta arqueológica mais significativa de Evangelhos e cartas parabíblicos foi a de Nag Hammadi, no Egito, em 1945, que revelou uma série de interessantes textos em copta», refere John Barton em Uma História da Bíblia. «Apenas um destes, o Evangelho de Tomé, é reconhecido por alguns académicos como contendo possivelmente alguns ditos genuínos de Jesus, um ou dois dos quais eram previamente conhecidos como agrapha através dos escritos de professores cristãos […]. Não é um Evangelho narrativo, mas puramente uma coleção de ditos […] alguns dos quais bastante enigmáticos».
É precisamente entre esses ditos que se encontra o que citámos, no início deste texto, a propósito da gruta e do túmulo. Vale a pena transcrever a passagem completa: «Jesus diz: ‘Eu sou a luz que está por cima de tudo. Eu sou o Tudo. De mim o Tudo proveio; e o Tudo chega até mim. Racha a madeira e aí estou. Levanta a pedra e aí me encontrarás.’»
Ainda que afastados do cânone da Bíblia, «é possível», considera o The Oxford Dictionary of the Christian Church (F. L. Cross, editor), que nalguns trechos os Evangelhos Apócrifos «incorporem tradições orais fiáveis». Outros dos seus livros, prossegue o dicionário, «tinham o objetivo de apoiar pontos de vista heréticos e, especialmente, gnósticos».
Será esse o caso do Fragmento das ‘Grandes Questões de Maria’, em que se encontra o desconcertante episódio de espermatofagia. «Um terceiro grupo destina-se a satisfazer a curiosidade popular com histórias sobre a infância de Cristo, a Sua paixão e a sua vida pós-Ressurreição; o seu conteúdo era muitas vezes patentemente tagarela e as suas ideias não infrequentemente imorais».
Uma janela para os primórdios
Em que momento é que os textos reunidos neste volume começaram a ser colocados de parte por uma espécie de cordão sanitário? Segundo Barton, foi um processo natural que começou muito cedo. «A crença de que existe um núcleo aceite por virtualmente todos os cristãos estava já estabelecida no século II d.C. Houve muitos livros que os cristãos liam, alguns dos quais acabaram por ser proscritos; mas nenhum se assemelhava a um livro central, para os professores e escritores cristãos, como os quatro Evangelhos, os Atos, as principais cartas de Paulo», explica o biblista e pastor britânico. «Em termos muito gerais, será justo dizer que os escritos do Novo Testamento cresceram durante o século I e até ao II e apenas foram finalmente restringidos – codificados ou canonizados – no século IV […]. Contudo, no final do século II, o núcleo era imensamente estável e os escritores cristãos estavam preparados para rejeitar alguns documentos como sendo inaceitáveis – embora até tão tarde como o século IV, ainda não houvesse uma clareza completa sobre o estatuto de alguns livros, como as cartas mais curtas ou mesmo o Apocalipse. Não é como se o Novo Testamento a princípio crescesse livremente, sem qualquer preocupação com questões da autoridade e autenticidade, e depois fosse limitado sem exceções e de forma absoluta, num claro processo em dois tempos», conclui.
Sem ignorar as questões de autenticidade, ao leitor atual – seja ou não seja ele crente – estes Evangelhos Apócrifos oferecem muito material para saborear e refletir com uma mente aberta. Lourenço defende que os «estudiosos comprometidos com uma agenda religiosa progressiva tendem a valorizar o potencial contido nestes evangelhos […] para se repensar, hoje, o cristianismo com menos dogmatismo, com mais liberdade de pensamento e com mais espírito de inclusão» – o que parecem ser, todas elas, pretensões perfeitamente legítimas.
Mas há ainda outro benefício claro a retirar desta leitura. Do ponto de vista histórico, os Evangelhos Apócrifos constituem uma janela privilegiada para a vivência religiosa popular dos primeiros séculos do cristianismo, quando este não fora ainda totalmente centralizado e ‘codificado’ pela Igreja de Roma. Não se trata meramente de uma versão alternativa dos factos. Com a sua ingenuidade cativante e o seu desrespeito pelas convenções da ortodoxia, permitem-nos obter um vislumbre destes cristãos porventura equivocados, mas sinceros, e que afinal estavam tão mais próximos do que nós dos acontecimentos relatados nas Escrituras.