A SEGUNDA VINDA
Por William Butler Yeats
Girando e girando num giro alargado
O falcão não consegue ouvir o falcoeiro
As coisas desmoronam-se, o centro não consegue aguentar
Mera anarquia derrama-se sobre o mundo,
A maré escura de sangue está à solta, e por todo o lado
A cerimónia da inocência é afogada;
Aos melhores falta a convicção, e os piores
Estão cheios de intensidade apaixonada
Um dos grandes poetas anglo-saxónicos do século 20, WB Yeats, um irlandês protestante, escreveu este poema premonitório de que transcrevi a primeira estrofe. “A segunda vinda”, poema de 1919, usa um imaginário cristão para descrever a atmosfera da Europa do pós-guerra (Iª Guerra Mundial), mas também absorve o espírito pessimista da pandemia da gripe espanhola que nessa altura grassava no mundo.
Dizia o Professor Adriano Moreira, que este ano completou um século de vida, que o centro é um lugar geométrico, mas hoje estou menos seguro de que assim seja. Eu diria antes que o centro é aquele sítio onde os países têm de ser governados, se não querem entrar numa espiral “girando e girando num giro alargado” que toca todos os extremos e experimentalismos antes de se perder definitivamente.
A questão é a de saber se o centro se consegue aguentar: Se a defesa da propriedade privada e da sua responsabilidade social; se a defesa da solidariedade social e da responsabilidade individual; se a defesa da economia social de mercado e da liberdade de iniciativa; se a defesa das quatro liberdades que animam a União Europeia (de livre circulação de pessoas, bens, serviços e capitais) , e a defesa das liberdades individuais de cada País da União; se a defesa da democracia representativa e da regra sacrossanta do equilíbrio dos poderes; se a defesa das nossas liberdades, de entre as quais a de livre expressão e associação e reunião e a capacidade de exercer restrição quando as circunstâncias o impõem; se a civilidade no tratamento entre adversários nos recorda que adversários não são inimigos; se todas estas regras e formas e tradições da nossa vida em comum têm alguém que ainda esteja disposto a viver por elas e a morrer por elas se necessário for.
Falha sempre alguma coisa na nossa organização colectiva, que temos de saber discutir e decidir; há sempre entendimentos diferentes sobre as melhores soluções para alcançar os mesmos objectivos, sejam uma melhor educação para os nossos filhos, um melhor acesso aos sistemas de saúde, melhores coberturas sociais, a valorização da iniciativa privada, o prémio do mérito, que acredito que são objectivos comuns a todos os que se reclamam do centro, divergindo natural e normalmente quanto às formas de lá chegar.
Mas se alguma coisa sempre falha, o que não pode falhar é a nossa forte convicção de que é neste local do centro, onde as pessoas de boa vontade, à falta de se entenderem, podem ao menos exprimir livremente e de forma responsável, as suas divergências, que temos de estar.
Já tanta gente o escreveu que é quase um chavão dizê-lo, mas o mundo onde temos a sorte de viver nem é eterno, nem é de uma solidez a toda a prova, porque não é perfeito, que a perfeição não é deste mundo.
É um mundo em permanente mutação, que nos coloca os mesmos velhos problemas de sempre sob roupagens novas, às quais por vezes atribuímos caracter de absoluta novidade, como se o mundo só tivesse começado a girar ontem. Não há soluções definitivas para problema nenhum, há soluções que em cada momento parecem as melhores e resolvem os problemas até eles ressurgirem. E não há soluções milagrosas, como os extremos nos tentam fazer acreditar.
Num mundo que às vezes parece um mundo de extremos, procuram fazer-nos acreditar que existe uma emergência climática cuja única solução é a imediata paragem da utilização de combustíveis fosseis. Se seguíssemos essa mezinha, o mundo tal como o conhecemos acabava em poucos anos, no meio de guerras horríveis por recursos escassos e de utopias transformadas em pesadelos, como é próprio das utopias.
A posição responsável é a de reduzir as emissões de CO2 na medida do possível, substituindo ao ritmo possível a energia de fontes fósseis por energias renováveis, procurando que a transição energética não se transforme num pesadelo para os mais desfavorecidos. É nos pesadelos que aparecem os monstros.
Tudo isto implica falar muito, discutir muito, sopesar os avanços científicos e, tal como foi feito com as vacinas para o Covid, pô-los à disposição de todos e mais do que isso, assegurar que todos estão em condições de pôr essas soluções em prática. Alguém acha que isto é fácil ou rápido?
É mais fácil e dá mais visibilidade entrar numa gritaria e exigir já soluções que não existem e culpar pelo caminho as liberdades e garantias de que pelo menos o mundo ocidental ainda vai beneficiando.
Não tenho dúvida de que “os piores estão cheios de intensidade apaixonada”, sendo que os piores, aqui, são aqueles que tentam objectar ao normal funcionamento das instituições e sistemas que enformam o nosso estilo de vida.
É à boleia desses piores – que curiosamente detestam com fúria destruidora o mundo ocidental onde vivem e se exprimem, mas omitem falar nos verdadeiros monstros que povoam o resto do mundo – que os Putin e Xi’s vicejam.
Não quero nem pensar no que seria um mundo pós apocalíptico em que homens como Vladimir Putin ordenassem. Os filmes de ficção sobre distopias futuras empalideceriam à beira dessa realidade de um governo de gangsters tirânicos. Também me recusaria a viver de boamente num mundo comandado por gente como Xi, que impõe de cima para baixo um total conformismo social e uma aceitação acrítica de tudo quanto seja decidido em cima.
Sinceramente, acho que o único consenso social que interessa é sobre a bondade do nosso modo de vida, podemos divergir sobre tudo o resto, com o cuidado de não ultrapassar linhas vermelhas da civilidade e do respeito mútuo. É desse caldo de cultura de intolerância que nascem os Trumps, mesmo em democracias tão estáveis como os Estados Unidos.
O inconformismo com as maleitas da nossa sociedade não se resolve com soluções intransigentes de radicalidade. Resolve-se com soluções inteligentes, responsáveis e centristas e já agora, com a assunção plena das responsabilidades colectivas e individuais. Será que o centro aguenta, ou é pedir demais?
Advogado, ex-secretário de estado da Justiça
Subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade