Alturas há em que as palavras se movem sozinhas. Os textos ganham vida por entre as paredes escorregadias das grutas da tristeza e o mundo, em redor, limita-se a ser apenas palco e testemunha daquilo que escrevo sem precisar de erguer sequer um dedo, dispensando as teclas, ignorando a vida para lá da varanda que será, para sempre, a metáfora de uma nau virada para a corrente do rio que desagua em todos os mares.
Um dia, um dia qualquer, um dia que não devia ter existido, comecei por uma linha solta, aqui no alto, uma linha que se multiplicou por outras, coluna abaixo. Vivíamos presos.
Eu estava preso num céu de pássaros mudos. Ou talvez estivesse apenas no meu posto. No meu posto da luta da memória contra o esquecimento, que era como Milan Kundera chamava à liberdade. E, no entanto, as pessoas esqueceram a vida e fecharam as portas a cadeado e tornaram-se tão distantes umas das outras que, ainda agora, existem amigos que perdi. Se de um lado fica o sentimento, do outro fica a mecânica. Aprendi desde cedo que a dor não se divide, só se multiplica.
De pouco serve partilhá-la com os outros, por mais próximo que nos sejam, porque não fica a doer menos e o acto é de um egoísmo insustentável. Carreguei aos ombros o sofrimento de muitos, mas não quero que ninguém tenha de me ajudar a subir esta íngreme escarpa que é a vida quando caminha para o fim, sobretudo para o fim da geração antes da minha, referências, filosofias, histórias, lembranças, aquilo que fui antes de ser quem sou e, agora, descubro, não sei continuar.
O meu pai ensinou-me que há sempre um poema para cada momento e que seremos capazes de o recitar de cor quando precisarmos que ele nos faça companhia, ritmos, imagens, ilusões, dizia o Torga no caminho mecânico do comboio cujas janelas estavam viradas para campos imprecisos que iam de braços abertos às montanhas. Deus, se tivesses a decência de existir, deixavas apenas que me deitasse no banco mais comprido que vagasse e pudesse dormir.