China. Guerra tecnológica com os EUA está a aquecer

China. Guerra tecnológica com os EUA está a aquecer


Após Biden escalar a guerra iniciada por Trump, limitando a venda de chips, Xi prometeu “autosuficiência tecnológica”. Precisa disso para não perder a corrida da inteligência artificial.


A batalha entre superpotências também será tecnológica e a China está decidida a vencê-la, garantiu Xi Jinping, este domingo, no início de um congresso histórico do Partido Comunista. “Vamos focarmo-nos nas nossas necessidades estratégicas nacionais, reunir força para levar a cabo investigação tecnológica e científica de ponta autóctone. E resolutamente ganhar a batalha em tecnologias chave”, prometeu Xi, quando se preparava a quebrar a tradição dos líderes chineses se afastarem após cumprirem dois mandatos de cinco anos, sendo o primeiro a fazê-lo desde Mao Tsé-Tung.

Contudo, para vencer a guerra, será preciso lançar “grandes projetos nacionais que são de uma importância estratégica, a longo prazo e com perspetiva alargada”, tentando alcançar “autosuficiência tecnológica”. É uma formulação críptica, lida como uma aposta em criar uma indústria chinesa de semicondutores, componente essencial para produzir chips modernos, descritos como uma espécie de petróleo do séc. XXI. E Washington mostra-se perfeitamente consciente disso, tendo Joe Biden tomado medidas para sufocar a nascente indústria de chips chinesa no berço.

“As reservas de petróleo definiram a geopolítica nas últimas cinco décadas. Onde estão as fábricas para o futuro digital é mais importante”, já avisava o diretor-executivo da Intel, Pat Gelsinger, em entrevista à CNBC, no final de março. Nem a invasão da Ucrânia e o uso de gás natural como arma por Vladimir Putin, dando um novo destaque à política energética, o fez mudar de ideias. Se o grosso das fábricas de semicondutores atualmente estão sediadas na Ásia, destacando-se Taiwan, isso significa que estão à mão de semear da China, que cada vez mais mostra ambições expansionistas.

“Vamos construí-las onde as queremos e definir o mundo de que queremos ser parte, nos EUA e na Europa”, apelou o diretor-executivo da Intel, que tem pressionado Washington e Bruxelas a oferecer incentivos à indústria de semicondutores, anunciando sucessivos investimentos em território americano e europeu. É que “tudo o que é digital corre em semicondutores”, lembrou.

Já Biden agiu escalando a vertente tecnológica da guerra comercial iniciada pelo seu antecessor – só que fê-lo discretamente, sem declarações bombásticas. Nos tempos de Donald Trump, o alvo era a Huwaei, um gigante das telecomunicações que foi limitado a comprar chips menos avançados, com os EUA a ameaçar retaliar contra quaisquer empresas que lhe vendesse componentes de ponta. Agora, na prática, quase toda a indústria chinesa ficou sob o mesmo regime que a Huwaei, precisando de licenças americanas para comprar chips avançados, com menos de 14 nanómetros. Esse pacote  entrou em vigor a semana passada e incluí também bloqueios na venda de máquinas de produção de chips à China. São vistas como as mais duras restrições em décadas, comparáveis com a Guerra Fria e o bloqueio à URSS.

Supostamente, estas medidas deveriam servir para travar avanços militares chineses, como o desenvolvimento de mísseis teleguiados ou de armas nucleares, assim como das secretas, usando como pretexto a segurança nacional americana. Mas “isto irá paralisar o desenvolvimento de inteligência artificial em todo o país. Dificultando progressos chineses no comércio online, veículos autónomos, cibersegurança, imagiologia médica, descoberta de medicamentos, modelação climática e muito mais”, frisou a Foreign Policy. Acrescentando que “empresas chinesas ainda podem importar semicondutores inferiores para usar em carros, torradeiras e muitas outras coisas”.

Afinal, estamos num momento em que a inflação se torna preocupação crescente nos EUA, chegando aos 8,2% em setembro, comparativamente ao ano anterior. É sabido que, ao longo das últimas décadas, “os trabalhadores chineses, com os seus baixos salários, fizeram muito mais para conter a inflação do que todos os bancos centrais juntos”, chegou a admitir Josep Borrell, o chefe da diplomacia de Bruxelas, numa conferência de embaixadores europeus, a semana passada. E Washington quer – precisa, diriam alguns analistas – que a China continue a produzir bens de consumo baratos para os americanos. Simplesmente quer que se limite a isso, em vez de ascender enquanto superpotência rival.

Para a economia da China, fortemente baseada na produção industrial, onde quase tudo requer chips, a falta de semicondutores é um risco existencial. Em 2021, o tamanho do mercado de semicondutores chinês equivalia a 190 mil milhões de euros, segundo dados do IC Insights, dos quais pouco mais de 30 mil milhões de euros foram fabricados na China, sendo que só 12,5 mil milhões de euros foram produzidos por empresas chinesas.

É algo que dificulta a vida de Xi, agora que empresas como a SK Hynix, um gigante sul-coreano dos cartões de memória, perdeu a autorização para renovar a sua fábrica em Wuxi, no leste da China, avançou o Financial Times. Ou quando a TSMC, a maior empresa taiwanesa e líder do mercado de semicondutores, que tinha fábricas na China, tem diversificado os seus investimentos, no rescaldo das tensões entre Pequim e Taipei, apostando em instalações no Japão e projetando fábricas em Singapura, longe do estreito de Taiwan, cuja indústria de semicondutores sempre foi vista como um “escudo de sílica”. Protegendo este território de uma agressão de Pequim, dado os estragos que isso traria à economia chinesa.

Nem tudo são más notícias para o regime de Xi. Os seus generosos subsídios deram vida à Yangtze Memory Technologies Corporation (YMTC), à qual a Apple pondera começar a comprar cartões de memória, para colocar nos iPhones que produz ali ao lado, sobretudo no Vietname e na Índia. Mostrando que a nascente indústria de semicondutores da China ainda não foi derrotada.

 

Ambição

Para esta guerra de tecnologias, Xi quer criar uma legião internacional de génios, prometendo que a China “vai atrair as melhores mentes de todas as áreas para a causa do partido e do povo”, prometeu este domingo. Por agora, o seu país parecer muito pouco atrativo, devido à política de “tolerância zero” face à covid-19, bloqueando a entrada de trabalhadores estrangeiros – mas importa lembrar que o regime chinês não está a pensar a curto prazo, planeia sempre com um horizonte de cinco anos ou mais.

Já a Administração Biden também tenta, de certa forma, pensar a longo prazo, tendo incluído no seu pacote de medidas sanções a todos os cidadãos americanos que apoiem o desenvolvimento, produção e utilização de chips em algumas fábricas na China. As medidas são amplas o suficiente para poderem afetar quem tenha visto de residência, como é o caso de muitos na elite chinesa, assim como entre engenheiros e executivos de empresas tecnológicas, avançou a Bloomberg. Dos sete diretores de investigação mais importantes da Piotech, principal produtora de semicondutores chinesa, seis são americanos. Agora terão de provar que o que produzem não vai parar às mãos de militares, algo quase impossível dadas as infindáveis utilizações dos chips.

O bloqueio americano pode acabar por ter um efeito inverso do pretendido, apontam analistas. “O desacoplamento tecnológico pode servir como o momento Sputnik da China”, descreveram economistas do Citigroup, à Reuters, comparando-o com o boom na investigação espacial dos EUA, após os soviéticos os baterem na corrida ao espaço. Aperceberem-se da sua vulnerabilidade pode levar o regime chinês a investir ainda mais, apostando em soluções engenhosas que não parecem economicamente viáveis à primeira vista.

“Olhando para trás, Xi deveria ter redobrado os esforços para reforçar a produção doméstica de equipamento de fabrico de semicondutores”, logo no seu no último congresso, em 2017, disse Paul Triolo, analista da Albright Stonebridge, à CNBC. Mas aí vivia-se num mundo diferente, a tensão geopolítica era menor, não parecia assim tão má ideia vender semicondutores à China ou depender de gás natural russo.

 

Príncipe vermelho

 “Mao Tsé-Tung fez o povo chinês levantar-se. Deng Xiaoping fez o povo chinês rico. Xi Jinping fará o povo chinês forte”, prometia uma manchete do Diário do Povo, o jornal oficial do Partido Comunista da China, após Xi chegar ao poder. Se uma China que só queria enriquecer se podia dar ao luxo de desenvolver uma indústria tecnológica gigante sem controlar a origem dos seus chips, bebendo de avanços feitos noutros países, uma China que trava um braço-de-ferro com os EUA não.

Naturalmente, Xi não viu com bons olhos as tentativas da Casa Branca de limitar as suas ambições. Sobretudo nas vésperas do congresso onde se sagraria o mais consequente líder chinês desde Mao, tornando-o, possivelmente, no homem mais poderoso do planeta.

Para Xi, a batalha tecnológica tem um uma importância pessoal. Este príncipe vermelho, filho de dois companheiros de Mao, Xi Zhongxun e Qi Xin, conhece bem o preço de perder o poder, tendo visto o pai ser perseguido na Revolução Cultural (1966-1976), caindo em desgraça por escrever um livro que contradizia ligeiramente o líder chinês. E Xi, para se assegurar que isso não acontecia, quando subiu ao trono montou um aparato de vigilância sem paralelo, controlando a internet e monitorizando cada cidadão.

Cinco anos antes, em 2008, o então Presidente Bill Clinton troçou da possibilidade da China controlar a internet, rindo e comparando-o a tentar “pregar gelatina à parede”. Mas Xi conseguiu, inicialmente usando um exército de censores, agora apostando cada vez mais em inteligência artificial. E isso fica em risco se não vencer a guerra pelos semicondutores.

Pequim “despejou recursos em desenvolver capacidades de supercomputação e procura tornar-se o líder mundial em inteligência artificial até 2030”, frisou a vice-secretária para o Comércio americana, Thea Rozman, justificando o pacote de restrições à China. “Está a usar essas capacidades para monitorizar, seguir e vigiar os seus próprios cidadãos”.

Do outro lado do Pacífico, a promessa é de retaliar. “A realidade é que os EUA estão determinados a usar chips como uma ferramenta para conter a China”, comentou Gu Wenjun, diretor de desenvolvimento da produtora de chips chinesa ICwise, citado pelo Taipei Times. “Não há possibilidade de reconciliação”.