Exilado e irritado. Aliás, mesmo com a pachorra a atingir os limites da apepinação. Era o que acontecia com Mohammad Amin al-Husayni, o Grande Mufti de Jerusalém, nessa altura da sua vida refugiado na Síria, mas sempre em contactos contínuos com amigos bastante manhosos, como eram os casos de Adolf Hitler e de Benito Mussolini.
Mohammad foi um anti-britânico dedicado. Não queria que a pata inglesa pisasse a Palestina e, durante a Revolta Árabe de 1936-39, fez com que ódio do velho império caísse sobre a sua figura característica. Andou fugido. E um Mufti não é um badameco qualquer, como imaginam. É alguém que, na religião islâmica, tem a capacidade para interpretar a “charia”_(a lei) e lançar “fatwas” (uma espécie de pronunciamento legal sobre um assunto específico) algo de muito incomodativo para os visados, como Salman Rushdie, o escritor, bem sabe. Oficialmente, Mohammad nunca chegou a ser proclamado Grande-Mufti, mas como filho das classes privilegiadas de Jerusalém ninguém lhe ia pedir a carteira profissional, ou lá qual seja o documento que oficializa o cargo. Era o presidente do Conselho Presidencial Muçulmano e isso chegava e bastava para assumir a posição de chefia.
Em Itália, as manifestações populares dos muçulmanos foram grandes e, como servia para hostilizar os britânicos, Il Duce tratou de lhes dar toda a liberdade das avenidas de Roma criando o ambiente propício para que Mohammad se fizesse convidado para uma visita oficial. Il Messagero, um dos periódicos que se colocava ao serviço do regime de Mussolini, tratou de aproveitar um incidente no aeroporto de Lydda, perto de Tel Aviv, para incendiar ainda mais o ambiente: “As impiedosas represálias levadas a cabo pelas autoridades britânicas depois da revolta iniciada em Lydda devia fazer com que o governo do Reino Unido repensasse o que está a fazer no território. Infelizmente, as esferas pretensamente humanitárias arvoram-se em moralistas por tudo e por nada mas, neste caso concreto, estamos certos que nenhum desses filantropos terá a coragem para abrir a boca!” Um texto agressivo mas um bocado como se fosse escrito do roto para o nu, tal as tranquibérnias que os exércitos italianos provocavam na Etiópia, esse sonho louco de Benito Mussolini de devolver a Roma um império intercontinental.
O pedinchão
O Mufti – pouco importa agora se era maior ou mais pequeno, era ele que mandava na comunidade muçulmana na Palestina e isso é que importava – pediu uma audiência com Mussolini e outra com Adolf Hitler. Estaremos todos de acordo que cada um escolhe os amigos que quer e ninguém tem nada a ver com isso. Mas se Mohammad queria ter amigos tão manhosos também é de inteira justiça que viesse depois a pagar pelas alianças malditas. Enquanto um autocarro judeu era atacado no centro de Jerusalém, ficando crivado de balas e rodeado por cadáveres (houve tempos em que estas notícias se estranhavam, podem crer!), o Mufti estendia o boné aos fascistas e aos nazis suplicando apoios para que a sua gente se pudesse armar para combater os britânicos, vistos por eles não só como potência colonizadora como defensores das comunidades judaicas contra as muçulmanas. Ao mesmo que as suas viagens a Roma e, a seguir, a Berlim, eram noticiadas pelos seus partidários como enormes vitórias da diplomacia de Mohammad, episódios diversos surgiam nos jornais de todo o mundo, provocando a habitual divisão entre os que se reviam num lado ou no outro da barricada. No mesmo dia um automóvel foi atacado em Motsa, tendo os quatro ocupantes sido assassinados, e um indivíduo judeu foi barbaramente esfaqueado em pleno bairro judaico de Jerusalém. Em Haifa, outro judeu foi encontrado enforcado num poste de candeeiro de rua. O Grande Mufti não tardou a ser responsabilizado pelos judeus por todas estas barbaridades individuais e os ingleses também não perderam a oportunidade de atirar para cima dos ombros de Mohammad a acusação de usar métodos terroristas. Jaffa foi, durante a madrugada, fustigada por bombas artesanais e a população entrou em pânico. Em Hebron, um posto de polícia foi invadido e todas as armas que estavam nas mãos dos guardas desapareceram, tudo levava a crer para serem entregues a revolucionários muçulmanos. As tropas britânicas estacionadas na região, que tinham por sua vez o nome um bocado sinistro de Black Watch, avançaram decididamente para a ocupar posições de inegável importância estratégica. Como sempre acontece, a II Grande Guerra ainda não começara a avassalar a Europa e já se iam fazendo experiências em territórios periféricos.
Em Berlim, o emissário especial do Grande Mufti reuniu-se com Reinhard Heydrich, o número dois da SS, e com Heinrich Himmler, chefe dos serviços de Segurança de Estado dos Serviços Secretos de Hitler. Mohammad inchava o peito de orgulho. Não era um meia-tijela, como toda a gente podia testemunhar. Não tardou a receber, com pompa e circunstância, dois oficiais da SS, Adolf Eichmann e Herbert Hagen em Jerusalém. Há muitos historiadores que defendem que, nesses encontros, os chefes nazis transmitiram ao Mufti a sua ideia macabra e peregrina da Solução Final. Não, não era gente de boa índole. Nem de índole nenhuma…