Muitas têm sido as tentativas de iludir a realidade dos abusos sexuais em Portugal. As razões para isso são históricas, sociais e quase tão obscuras como as que motivam a assustadora prevalência deste crime na nossa sociedade. Alguma coisa terá a ver com o patriarcado e a construção de género da sexualidade, provavelmente até mais do que a já provada influência patológica no fenómeno.
Mas há uma dimensão social desta realidade que é mais límpida do que todas as outras: a identificação de uma instituição em particular, com determinadas características – imposições comportamentais, leis morais, confiança da sociedade, acesso privilegiado – que aparece há anos envolvida no maior escândalo de abuso sobre menores: a Igreja Católica.
“A lição que aprendemos de países em todo o mundo é que um longo silêncio pode pressagiar os maiores escândalos de abuso”. Esta conclusão foi enunciada pela Child Rights International Network (CRIN) num relatório de 70 páginas que começou a levantar o véu sobre os crimes sexuais de titulares da Igreja Católica na América Latina. Entre vários países onde o assunto oficialmente não existia, destacava-se – pela inverossimilhança – o Brasil, o país com maior número de católicos no mundo, uma ocultação contrastante com um relatório interno do Vaticano que, em 2005, apontava para um em cada dez padres brasileiros envolvido em abusos.
Atenção para as explicações da CRIN que, em 2014, publicou outra investigação sobre abusos na Igreja em todo o mundo na qual denunciava que “a América Latina era uma das principais regiões para as quais eram enviados os padres acusados de agressões na América do Norte e na Europa” e que “o número de denúncias era muito baixo em comparação com o de outros países com populações católicas muito menores". O relatório aponta ainda a inexistência de investigações jornalísticas como uma das causas para a ocultação desses crimes, assim como as pressões sobre a comunicação social, as vítimas ou as autoridades civis.
Voltando à Europa, em França estima-se que mais de 300.000 crianças ou adolescentes foram abusados ou agredidos sexualmente por clérigos católicos ou religiosos e leigos que trabalhavam em instituições da Igreja, entre 1950 e 2020. Na Irlanda, múltiplos relatórios calcularam mais 15.000 casos de abusos sexuais cometidos entre 1970 e 1990. Na Alemanha, foram identificados pelo menos 1670 clérigos envolvidos em abuso sexual de crianças. País a país, o a conclusão é sempre a mesma: muitas vítimas, poucos condenados. É uma autêntica pandemia.
É neste âmbito – e em nenhum outro – que podemos interpretar as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa sobre o mais recente balanço das denúncias recolhidas pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja, num total de 424 queixas de abusos sexuais de menores na Igreja. É neste contexto que chocam as palavras “este número não parece particularmente elevado face à provável triste realidade, quer em Portugal, quer pelo Mundo”.
Chocam porque sabemos que, quer em Portugal, quer pelo mundo, uma igreja cujos representantes ainda se arrogam o direito de dizer: “não podemos julgar o passado com critérios de hoje”, como se o abuso sexual de crianças alguma vez não tivesse sido condenável, não está preparada para desocultar e trazer verdade histórica sobre os seus crimes. Porque sabemos que, mesmo perante a evidência dos crimes, a Igreja Católica goza da deferência do Presidente da República, a tal ponto que Marcelo se sentiu na obrigação de se explicar ao destinatário (Bispo José Ornelas) perante uma queixa que foi obrigado a fazer. Chocam porque sabemos que a desvalorização e o encobrimento têm andado a par.
Já não bastam palavras quando o que faltam são medidas que promovam a denúncia e rebentem com o clima de ímpia impunidade em que vive a maioria dos agressores numa sociedade que normalizou o abuso sexual de menores. Mas, ainda assim, as palavras contam e as do Presidente deixaram-no devedor, no mínimo, de um pedido de desculpas.