Há casos e casos, até no Governo


É surrealista candidatar Eduardo Cabrita à liderança do Frontex, enquanto Pizarro e Abrunhosa estão feridos na asa.


1. Já se conhece a proposta de Orçamento do Estado. Até à aprovação final algumas coisas irão mudar. Não é, portanto, o momento de tentar apurar a substância do seu conteúdo, mas já estamos a assistir a novos números de ilusionismo da parte do Governo, num faz que dá, mas não dá e até tira. O Governo aproveita o aumento brutal das receitas gerado pela inflação e opta pela consolidação orçamental, melhorando o desequilíbrio das contas face ao exterior.

Quanto à oposição não vale a pena perder tempo a analisar as suas propostas alternativas, porque são todas feitas por quem sabe que não tem de as aplicar. Treinador de bancada é vida fácil. Vai ser preciso esmiuçar o documento final para ter uma ideia mais clara do que aí vem, sendo certo que, coletivamente, vamos pagar mais e receber menos. Haverá ainda menos diferença entre pobres e a nossa indigente classe média.

A vida não vai melhorar, ao contrário do que diz a canção brasileira. E será cada vez mais tentadora a hipótese de emigrar para quem tiver formação superior em áreas requisitadas.

2. Sucedem-se casos atrás de casos no Governo e na política em geral. Curiosamente, a notícia mais surrealista teve pouco eco. Custava a crer e dizia que Portugal vai candidatar Eduardo Cabrita a diretor executivo do Frontex.

O mesmo Eduardo Cabrita que era ministro da Administração Interna quando um ucraniano, potencial emigrante, foi morto à pancada por agentes do SEF; o mesmo Eduardo Cabrita que decidiu e não conseguiu extinguir o tal SEF; o mesmo Eduardo Cabrita que tem a mulher (Ana Paula Vitorino) à frente de um regulador depois de ter estado com ela no mesmo Governo; o mesmo Eduardo Cabrita envolvido indiretamente num acidente de viação com o carro do Estado e que não teve uma atitude de sincera compaixão pelo caso; aquele Eduardo Cabrita que no Parlamento tirava o microfone e não deixava falar um secretário Estado; o mesmo Eduardo Cabrita que foi colega de curso e íntimo de António Costa.

Pois é ele mesmo que Portugal deseja indicar para liderar uma agência cuja missão é proteger e controlar as fronteiras europeias. Pode parecer, mas não é uma notícia “fake”. O mais curioso é que parece que a criatura tem hipótese de ser eleita, o que traz o risco de exportar as suas façanhas políticas para os areópagos internacionais, com os danos reputacionais que tal implicaria para a nossa república. Eduardo e Ana Paula são uma dupla ímpar no circo político-mediático português.

3. Quanto ao resto do panorama interno, a coisa não é propriamente brilhante. Pedro Nuno Santos está a ser martirizado por ter 1% de uma empresa maioritariamente da sua família que faz contratos com o Estado. Há uma lei que proíbe que empresas onde familiares de membros do Governo detenham mais de 10% façam esses contratos. No caso de Pedro Nuno Santos os ataques podem ter base legal, mas são absurdos, porque a empresa existe há muito e nada mudou no seu comportamento e no tipo de contratos que sempre fez. Não há atropelo à ética que é aquilo que realmente poderia estar em causa. Os ataques ao ministro têm mais a ver com o seu peso político e as vastas áreas que ele tutela, onde se decidem milhares de milhões e se cruzam interesses gigantescos, nacionais e internacionais.

4. Diferente é o caso do recém-chegado ministro da Saúde, Manuel Pizarro. A mulher, ainda antes de casar, chegou a bastonária da Ordem dos Nutricionistas quando a organização foi legalizada por decisão de Pizarro, então secretário de Estado de Sócrates. Agora, foi preciso a imprensa denunciar que Pizarro iria tutelar a relação com as ordens para ele delegar essa competência.

Para agravar o caso, soube-se ainda que o ministro mantinha aberta uma empresa de consultoria na área da saúde. São casos a mais para um ministro recém-chegado. Igualmente grave é o caso Ana Abrunhosa, cujo marido acedeu a fundos validados pela área que a sua cara metade tutela, tendo além disso um sócio condenado por corrupção. Abrunhosa e Pizarro estão feridos na asa. Entre estes casos e os do Governo anterior, como o que se passou com as encomendas das célebres golas supostamente não inflamáveis, ou a circunstância do ministro Siza Vieira ter constituído uma empresa no dia em que tomou posse, foram-se sucedendo episódios que minam a confiança nas instituições.

5. No PS corre agora uma vaga para empurrar João Soares para provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, sucedendo a outro socialista. Seria uma substituição interpares. Já não há sequer o decoro de criar uma certa rotatividade alternativa em alguns lugares. Resta ver se António Costa aceita a proposta, depois de ter demitido abruptamente João Soares do Governo por ele ter prometido umas bofetadas a uns críticos quando era ministro da Cultura. São águas passadas, mas tanto Costa como Soares têm memória de elefante. Para João Soares, o lugar poderia dar-lhe novamente protagonismo público e ser um ponto de partida ou de chegada para uma carreira política longa, mas que nunca teve plena consagração.

6. Luís Montenegro fez 100 dias à frente do PSD. As sondagens mostram que tem vindo a subir, o que se deve ao seu trabalho e certamente às sucessivas trapalhadas governamentais. O primeiro balanço desta longa marcha é, portanto, positivo, o que era previsível, na medida em que sucedeu a um líder errático, aparelhista e mais regional que nacional. Montenegro tem mais mundo, mais perspetivas globais e sabe manter portas abertas e distâncias para o PPD/PSD ter alternativas. A comunicação está melhor, o discurso é sóbrio e propositadamente dúbio. Falta uma reorganização estrutural do partido e é uma evidência que Miranda Sarmento não é um bom líder parlamentar, por muito estimável e competente que seja. Mesmo num grupo parlamentar feito principalmente por Rio, havia alternativas mais dinâmicas.

7. As circunstâncias que rodeiam alegados comportamentos de encobrimento de atos pedófilos cometidos por outros, por parte do bispo D. José Ornelas, recomendam que este deixe de ocupar o lugar de presidente da Conferência Episcopal portuguesa. Não está em causa a pessoa nem a sua função de bispo, mas a representação coletiva da Igreja portuguesa que envolve as suas funções à frente da Conferência Episcopal portuguesa.

8. Hoje é dia da Hispanidade, a festa nacional de Espanha, que corresponde à data da chegada de Cristóvão Colombo à América. Não é fácil ser vizinho de um país tão influente e com a capacidade económica de Espanha. Os povos ibéricos complementam-se e são rivais. Juntos formam uma das regiões mais importantes do mundo em muitos aspetos, do cultural ao geoestratégico. Portugueses e espanhóis não são irmãos. São primos direitos e, portanto, ramos diferentes que se desenvolveram de forma simultaneamente próxima e diversa.

Eles, espanhóis, nunca percebem bem porque é que não somos parte integrante de Espanha. Nós gostamos de sermos o que somos: uma espécie de bascos ou catalães bem-sucedidos. E isso permite-nos gostar de Espanha e saudar a Hispanidade sem complexos. Devemos, porém, evitar uma excessiva dependência económica, o que não temos conseguido. Em muitos anos de governação democrática, só Cavaco Silva teve em conta a necessidade permanente de Portugal apresentar melhores resultados económicos do que Espanha, a fim de atrair investimento para cá e não para lá. Mais um hábito que se perdeu.

Há casos e casos, até no Governo


É surrealista candidatar Eduardo Cabrita à liderança do Frontex, enquanto Pizarro e Abrunhosa estão feridos na asa.


1. Já se conhece a proposta de Orçamento do Estado. Até à aprovação final algumas coisas irão mudar. Não é, portanto, o momento de tentar apurar a substância do seu conteúdo, mas já estamos a assistir a novos números de ilusionismo da parte do Governo, num faz que dá, mas não dá e até tira. O Governo aproveita o aumento brutal das receitas gerado pela inflação e opta pela consolidação orçamental, melhorando o desequilíbrio das contas face ao exterior.

Quanto à oposição não vale a pena perder tempo a analisar as suas propostas alternativas, porque são todas feitas por quem sabe que não tem de as aplicar. Treinador de bancada é vida fácil. Vai ser preciso esmiuçar o documento final para ter uma ideia mais clara do que aí vem, sendo certo que, coletivamente, vamos pagar mais e receber menos. Haverá ainda menos diferença entre pobres e a nossa indigente classe média.

A vida não vai melhorar, ao contrário do que diz a canção brasileira. E será cada vez mais tentadora a hipótese de emigrar para quem tiver formação superior em áreas requisitadas.

2. Sucedem-se casos atrás de casos no Governo e na política em geral. Curiosamente, a notícia mais surrealista teve pouco eco. Custava a crer e dizia que Portugal vai candidatar Eduardo Cabrita a diretor executivo do Frontex.

O mesmo Eduardo Cabrita que era ministro da Administração Interna quando um ucraniano, potencial emigrante, foi morto à pancada por agentes do SEF; o mesmo Eduardo Cabrita que decidiu e não conseguiu extinguir o tal SEF; o mesmo Eduardo Cabrita que tem a mulher (Ana Paula Vitorino) à frente de um regulador depois de ter estado com ela no mesmo Governo; o mesmo Eduardo Cabrita envolvido indiretamente num acidente de viação com o carro do Estado e que não teve uma atitude de sincera compaixão pelo caso; aquele Eduardo Cabrita que no Parlamento tirava o microfone e não deixava falar um secretário Estado; o mesmo Eduardo Cabrita que foi colega de curso e íntimo de António Costa.

Pois é ele mesmo que Portugal deseja indicar para liderar uma agência cuja missão é proteger e controlar as fronteiras europeias. Pode parecer, mas não é uma notícia “fake”. O mais curioso é que parece que a criatura tem hipótese de ser eleita, o que traz o risco de exportar as suas façanhas políticas para os areópagos internacionais, com os danos reputacionais que tal implicaria para a nossa república. Eduardo e Ana Paula são uma dupla ímpar no circo político-mediático português.

3. Quanto ao resto do panorama interno, a coisa não é propriamente brilhante. Pedro Nuno Santos está a ser martirizado por ter 1% de uma empresa maioritariamente da sua família que faz contratos com o Estado. Há uma lei que proíbe que empresas onde familiares de membros do Governo detenham mais de 10% façam esses contratos. No caso de Pedro Nuno Santos os ataques podem ter base legal, mas são absurdos, porque a empresa existe há muito e nada mudou no seu comportamento e no tipo de contratos que sempre fez. Não há atropelo à ética que é aquilo que realmente poderia estar em causa. Os ataques ao ministro têm mais a ver com o seu peso político e as vastas áreas que ele tutela, onde se decidem milhares de milhões e se cruzam interesses gigantescos, nacionais e internacionais.

4. Diferente é o caso do recém-chegado ministro da Saúde, Manuel Pizarro. A mulher, ainda antes de casar, chegou a bastonária da Ordem dos Nutricionistas quando a organização foi legalizada por decisão de Pizarro, então secretário de Estado de Sócrates. Agora, foi preciso a imprensa denunciar que Pizarro iria tutelar a relação com as ordens para ele delegar essa competência.

Para agravar o caso, soube-se ainda que o ministro mantinha aberta uma empresa de consultoria na área da saúde. São casos a mais para um ministro recém-chegado. Igualmente grave é o caso Ana Abrunhosa, cujo marido acedeu a fundos validados pela área que a sua cara metade tutela, tendo além disso um sócio condenado por corrupção. Abrunhosa e Pizarro estão feridos na asa. Entre estes casos e os do Governo anterior, como o que se passou com as encomendas das célebres golas supostamente não inflamáveis, ou a circunstância do ministro Siza Vieira ter constituído uma empresa no dia em que tomou posse, foram-se sucedendo episódios que minam a confiança nas instituições.

5. No PS corre agora uma vaga para empurrar João Soares para provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, sucedendo a outro socialista. Seria uma substituição interpares. Já não há sequer o decoro de criar uma certa rotatividade alternativa em alguns lugares. Resta ver se António Costa aceita a proposta, depois de ter demitido abruptamente João Soares do Governo por ele ter prometido umas bofetadas a uns críticos quando era ministro da Cultura. São águas passadas, mas tanto Costa como Soares têm memória de elefante. Para João Soares, o lugar poderia dar-lhe novamente protagonismo público e ser um ponto de partida ou de chegada para uma carreira política longa, mas que nunca teve plena consagração.

6. Luís Montenegro fez 100 dias à frente do PSD. As sondagens mostram que tem vindo a subir, o que se deve ao seu trabalho e certamente às sucessivas trapalhadas governamentais. O primeiro balanço desta longa marcha é, portanto, positivo, o que era previsível, na medida em que sucedeu a um líder errático, aparelhista e mais regional que nacional. Montenegro tem mais mundo, mais perspetivas globais e sabe manter portas abertas e distâncias para o PPD/PSD ter alternativas. A comunicação está melhor, o discurso é sóbrio e propositadamente dúbio. Falta uma reorganização estrutural do partido e é uma evidência que Miranda Sarmento não é um bom líder parlamentar, por muito estimável e competente que seja. Mesmo num grupo parlamentar feito principalmente por Rio, havia alternativas mais dinâmicas.

7. As circunstâncias que rodeiam alegados comportamentos de encobrimento de atos pedófilos cometidos por outros, por parte do bispo D. José Ornelas, recomendam que este deixe de ocupar o lugar de presidente da Conferência Episcopal portuguesa. Não está em causa a pessoa nem a sua função de bispo, mas a representação coletiva da Igreja portuguesa que envolve as suas funções à frente da Conferência Episcopal portuguesa.

8. Hoje é dia da Hispanidade, a festa nacional de Espanha, que corresponde à data da chegada de Cristóvão Colombo à América. Não é fácil ser vizinho de um país tão influente e com a capacidade económica de Espanha. Os povos ibéricos complementam-se e são rivais. Juntos formam uma das regiões mais importantes do mundo em muitos aspetos, do cultural ao geoestratégico. Portugueses e espanhóis não são irmãos. São primos direitos e, portanto, ramos diferentes que se desenvolveram de forma simultaneamente próxima e diversa.

Eles, espanhóis, nunca percebem bem porque é que não somos parte integrante de Espanha. Nós gostamos de sermos o que somos: uma espécie de bascos ou catalães bem-sucedidos. E isso permite-nos gostar de Espanha e saudar a Hispanidade sem complexos. Devemos, porém, evitar uma excessiva dependência económica, o que não temos conseguido. Em muitos anos de governação democrática, só Cavaco Silva teve em conta a necessidade permanente de Portugal apresentar melhores resultados económicos do que Espanha, a fim de atrair investimento para cá e não para lá. Mais um hábito que se perdeu.