Desde 2020 que a prestigiada revista The Economist deixou de classificar Portugal como uma democracia plena, passando a denominá-la de democracia com falhas. Para tal muito contribuíram a supressão dos debates quinzenais com o Primeiro-Ministro e a limitação drástica à intervenção da oposição, com a consequente redução do papel do Parlamento. Durante a pandemia essa situação revestiu extrema gravidade, com o Governo a legislar sistematicamente através de regulamentos em matérias da competência do Parlamento, sem que o Parlamento tivesse alguma vez reagido contra esta usurpação das suas competências constitucionais.
Um dos aspectos em que as falhas do Parlamento são visíveis reside nas audições parlamentares, em que os Deputados deveriam ouvir as entidades que convocam e ponderar o que elas lhes relatam. Infelizmente, no entanto, o que se está a verificar é que as audições parlamentares revestem cariz meramente formal, em que qualquer discurso desalinhado é suprimido e as audições são realizadas durante o mínimo tempo possível, apenas para cumprir uma formalidade.
Tivemos recentemente dois episódios desta situação. Um abrangeu a Ministra da Coesão Territorial, que estava a ser ouvida em comissão parlamentar e foi questionada por um deputado sobre uma situação de conflito de interesses em que alegadamente estaria envolvida. Logo a seguir a essa pergunta, a que a Ministra não respondeu, uma deputada solicita o apagamento da gravação e a eliminação dessa passagem da acta. Temos assim que, em lugar de os Ministros responderem às perguntas dos Deputados numa audição parlamentar, propõe-se o apagamento dessas perguntas da respectiva acta e das gravações, um verdadeiro acto de censura às questões colocadas pelos Deputados ao Governo, sem precedentes na história do Parlamento.
Outro episódio envolveu a audição da Ordem dos Advogados no Parlamento sobre os projectos de alteração à Lei das Associações Públicas Profissionais, em que estive presente em sua representação. Nos termos do art. 3º j) do Estatuto da Ordem dos Advogados é atribuição da Ordem dos Advogados “ser ouvida sobre os projetos de diplomas legislativos que interessem ao exercício da advocacia e ao patrocínio judiciário em geral e propor as alterações legislativas que se entendam convenientes”. Seria, por isso, de esperar que os Senhores Deputados quisessem de facto ouvir a Ordem dos Advogados e acolher as alterações que a mesma propusesse, especialmente perante diplomas que representam o maior ataque à Advocacia desde a fundação da Ordem dos Advogados em 1926.
Infelizmente não foi isso, porém, o que se verificou. Depois do adiamento da primeira marcação da audição da Ordem dos Advogados, inicialmente prevista para 15 de Setembro, a mesma acabou por se realizar no passado dia 29 de Setembro, começando 45 minutos depois da hora indicada. A audição foi, porém, conjunta com a Ordem dos Notários e a dos Solicitadores e Agentes de Execução, quando as questões se colocavam em termos radicalmente diferentes em relação a qualquer destas três Ordens, sendo que um dos projectos em discussão propunha mesmo a extinção dessas duas outras Ordens.
Os Senhores Deputados deram, no entanto, apenas a cada uma dessas Ordens Profissionais doze minutos para se pronunciarem sobre quatro diplomas em discussão, o que dá três minutos para cada um dos diplomas. Sendo que um dos diplomas propunha mesmo a extinção de duas dessas Ordens, deve ser caso único no mundo um Parlamento dar a uma associação pública profissional três minutos para se pronunciar sobre a sua própria extinção.
Tive ocasião de na audiência alertar os Senhores Deputados para essa inconcebível situação e a resposta que tive é que ainda iríamos responder às suas perguntas, pelo que o tempo concedido até extravasa o que habitualmente davam. É assim manifesto que os Senhores Deputados nunca quiseram ouvir as Ordens Profissionais, mas apenas fingir que as ouvem, mesmo quando apresentam propostas altamente gravosas para as mesmas.
O que se está a passar no Parlamento leva a que nos questionemos se Portugal ainda merece a qualificação de democracia com falhas ou se já passou mesmo a ser apenas uma democracia meramente formal. Porque audições parlamentares em que não se é ouvido não são seguramente típicas de uma verdadeira democracia.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
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