Por Teresa Carvalho
O título do novo romance de Dulce Garcia troca a curva pela linha reta e tem a força de uma agressão: Olho da Rua. O infeliz contemplado há de sair de um lote de funcionários a dispensar de uma agência de publicidade e comunicação. De acordo com os preceitos da Roda da Fortuna, a vida no trabalho haveria de ser marcada por estados previsíveis de ascensão e declínio.
Para sobrevivermos, para nos livrarmos do infortúnio absoluto do olho da rua, ou para obtermos um bom lugar no escadório da hierarquia, bastaria que agíssemos de forma condizente com cada um desses estados. Haveria uma conduta ideal para alcançarmos a segurança dos postos mais altos, outra para nos mantermos neles, outra para avagarar o declínio e outra, ainda, para nos restaurarmos após a queda.
Sucede que a Roda da Fortuna está ausente deste bem movimentado xadrez ficcional de Dulce Garcia, onde a sorte é ditada por uma inovadora estratégia japonesa de despedimento: os colaboradores a sair são convidados a escolher entre si quem deverá ser despedido. E, já se sabe: quem escolhe, rejeita. Assim, a anos de empenhado trabalho, dedicação e sacrifício pessoal pode bem corresponder um despedimento sumário – à japonesa. Suprema ironia, este método nipónico de adelgaçamento. Mas não é a única.
A estratégia passa pela corneta de uma batalha crua e ingrata, que torna ansiosa a expectativa do resultado. É cheia de lances duros, de golpes de manga, trunfos inesperados, alianças improváveis, vermelhos vivos. Quadros, gráficos e tabelas, informes de natureza estatística – espécie de armas potencialmente mortíferas – têm um importante papel a jogar em todo o processo: são elementos facilitadores, “a normalização do caos, a caneta cinzenta que põe em ordem a pintura demasiado colorida”.
Lúcido, implacável, feroz, escrito com estupenda desenvoltura verbal, Olho da Rua situa-nos num mundo regido pelo capitalismo do descartável e instala-nos em plena selva. Rege-se pela frieza e pelo uso de um glossário comunicativo onde cabem verbos como “arfar”, “depenar”, “esmagar”, “espezinhar”. As personagens, na sua solidão irremediável, falam(-nos).
A barata, a abelha, a ursa, a coruja, a mosca da fruta, o cisne negro, a hiena vêm compor uma fábula nada distante do quotidiano urbano do século XXI, que tantas vezes nos oferece “a pantomina da família feliz”, “do amor é lindo”, das maravilhas da “estupenda glória da maternidade”, das “zonas de conforto”, esse campo que mais nos atrasa e amesquinha. Razão tinha Rilke quando nos disse que há entre as coisas e os animais um numeroso acontecer.
Foi jornalista ao longo de vários anos, 27, mais precisamente. O que a levou a abandonar o jornalismo?
Foi um conjunto de circunstâncias. Estive na fundação da Sábado, a revista entretanto sofreu algumas mudanças e acabei por sair em 2017, ao fim de 14 anos. O projeto transformou-se, passou a ser outro e deixou de me interessar.
O estado atual do jornalismo, que por vezes parece transformado naquilo que Nelson Rodrigues chamou “um simples brinquedo auditivo”, contribuiu para essa saída?
Seria mentirosa se dissesse que não. Também contribuiu bastante. Comecei a trabalhar como jornalista em 1991 (estava ainda no 2.º ano da faculdade) e, nessa altura, o jornalismo era uma profissão muito nobre e relativamente bem paga; e era um modo de vida muito atraente: havia um élan à volta do jornalismo, era a busca da verdade, muito mais do que a procura de cliques, sondagens ou audiências. Estávamos ainda numa espécie da idade da inocência. Podíamos perseguir as histórias que queríamos, tínhamos espaço e tempo, não precisávamos de fazer títulos que deixassem as pessoas absolutamente aterradas para logo a seguir clicar e ir ver o que se passa; e são tantas as vezes em que o título nem sequer corresponde ao que depois lá figura.
E em sua opinião a que se fica a dever este estado de coisas?
Julgo que o problema tem muito a ver com o facto de o mundo estar a viver uma era em que a verdade é permanentemente posta em causa pelas pessoas que decidem, que governam a nível mundial. Basta pensar nos casos do Brasil ou dos Estados Unidos, em que há interpretações diversas da realidade, e em que se prova que políticos galgam a verdade como se a verdade fosse um detalhe. Ora a verdade não é um detalhe. Isto é tão bizarro que produz notícias, o próprio processo gera e alimenta as notícias. Temos pois figuras que nem sequer têm um pensamento muito estruturado sobre uma série de coisas, ou são absolutamente desalmadas, a terem imenso tempo de antena e a vida normal, seja lá o que isso for, a ética e o respeito pelo ser humano têm cada vez menos tempo de antena. Não é notícia.
Por outro lado, havia o apelo dos livros… tanto assim, que vai para a Planeta.
Desde muito cedo que sempre desejei escrever, na verdade desde que comecei a ler. Mas rapidamente percebi que estava no país errado para fazer disso a minha vida: a escrita alimenta muito mal. De modo que desde muito cedo também procurei uma profissão em que pudesse conjugar o desejo da escrita com a sobrevivência. Não cheguei ao jornalismo com uma grande vontade de ser justiceira e encontrar a ‘verdade’ ou revelar grandes histórias, embora todos os jornalistas queiram repor alguma justiça, isso é inegável. Sempre gostei de contar histórias e, nesse tempo em que fui jornalista, isso era permitido. Depois, em Portugal, é difícil ir subindo na profissão sem mandar. O que acontece é que a pessoa vai escalando e, de repente, já não escreve; aquilo que sempre a fascinou na profissão já não é possível fazer. Acaba por estar enredada numa série de coisas e nenhuma delas é a que sempre quis fazer. E a verdade é que também é uma profissão de desgaste muito rápido. Estive sempre na imprensa escrita e fiz semanário, diário, revista, também cheguei à sub-direção da Sábado e, portanto, não havia muito mais caminho a fazer.
E o tempo que passou no Diário Económico? Como é que domesticava a escrita? Sentia-se numa camisa de forças?
Por vezes, os editores ou os chefes de redação diziam-me, com uma certa bonomia: “É impressionante: arranjas sempre maneira de se notar que foste tu que escreveste”, como se quisessem dizer que eu nunca me havia de adaptar a escrever daquela forma tão mecânica, tão seca. Aquele espartilho era-me difícil, mas eu estava nas áreas de cultura e media, escrevia sobre publicidade, tinha alguma liberdade nas peças que escrevia. Não escrevia sobre finanças nem sobre mercados, áreas sobre as quais não sou nada entendida.
Depois, foi trabalhar para a Planeta. Nessa altura, escrevia para o eco morto da gaveta?
Quando acabei o livro que publiquei em 2017 [Quando perdes tudo não tens pressa de ir a lado nenhum, Guerra & Paz], comecei logo a escrever este romance, enquanto ainda era editora na Planeta. Mas depois o administrador do grupo editorial mudou, aquele projeto transformou-se, deixou de se adequar ao meu perfil e acabei por ir parar a uma área completamente distinta, que exigiu de mim capacidade de adaptação. Mas fui muito feliz como editora de livros, conheci pessoas ótimas. Cumpria-se o meu sonho: pagarem-me para ler [risos].
Este seu novo romance estende-nos um retrato fortíssimo do Portugal laboral contemporâneo. O desassombro manifesta-se no modo como aborda temáticas como a família, a gravidez ou o envelhecimento, mas também na linguagem, direta, firme, enérgica, não fechando as portas a um léxico por vezes mais desbragado. Disse já que não lhe interessa escrever alta literatura. Mantém?
Nós portugueses, também a escrever, temos uma série de particularidades, nomeadamente um grande apego à língua, por vezes como se estivéssemos a trabalhar em filigrana, como se estivéssemos a fazer uns brincos de Viana. A língua é para mim um valor indiscutível, poderosíssimo. Faz com que um país pequeno como o nosso tenha uma representação no mundo tão vasta. Torna-nos possíveis no mundo, em vez de escondidinhos num canto do globo. Mas eu tenho muito interesse em contar histórias; é essa a área que me fascina, e quero escrever de forma a que todas as pessoas possam ler. E sinto que em Portugal, ao contrário, por exemplo, do que acontece no mercado brasileiro, não há muita oferta entre a dita grande literatura e uma literatura mais popular. E quando dizemos ‘escrita pop’ parece que já estamos a entrar num campeonato não muito simpático. Temos escritores brasileiros que nos põem diante de perspetivas incríveis e não são todos Rubems Fonsecas.
Que, aliás, também foi jornalista.
Sim, que trabalhou como repórter e também tem uma escrita muito singular. Tenho todo o respeito pela grande literatura, mas acho que nesta altura da minha vida ainda não estou na fase madura de me preocupar sobretudo em trabalhar a linguagem, não estou sentada à frente do computador a brincar com as palavras. Ainda tenho muito a fazer, aspetos de intervenção social, coisas que me inquietam muito. Interessa-me e quero chamar a atenção para as armadilhas em que estamos a cair. Acho, por exemplo, que o nosso eterno Nobel, o António Lobo Antunes, que foi muito disruptivo na altura em que surgiu, não estava assim tão preocupado com a linguagem. Na altura em que começou a escrever, não se orientava pela ideia de fazer alta literatura. Querer chegar e querer fazer alta literatura, haverá com certeza quem consiga, mas não é o que eu imagino.
Entretanto, Lobo Antunes deixou de contar histórias, parece ter ficado enredado na teia da linguagem, o que lhe terá retirado leitores…
Também acontece isso no cinema. Somos muito contemplativos e interiorizamos muito. Parece que estamos sempre a fazer contas connosco. E isso acaba por se sobrepor, como forma de criação, à natural vocação das artes para retratar universos, sociedades. Creio que tem que ver com a nossa necessidade quase contínua de representar a introspeção, de fazer análises. Se virmos a literatura anglo-saxónica, nomeadamente a norte-americana – mas a britânica também – é uma literatura mais viva. Nós fazemos mais rodeio. Parece-me que precisamos de mais tempo para assimilar, para analisar e só depois produzimos a nossa visão. Parece que estamos sempre a precisar de analisar para depois falar sobre o assunto. A forma como lidam com o tempo é muito distinta da nossa, é tudo muito mais rápido, muito mais acelerado e também mais espetacular. E nós é tudo mais fado, mais lamento.
Curiosamente, neste seu romance o lamento, o queixume, o desabafo quase não ocupam espaço narrativo. O seu registo fica a muita distância desses campos.
Quando estamos realmente aflitos, não sobra tempo para a queixa. E ficar desempregado é uma situação muito difícil e talvez não tenha sido ainda analisada a fundo, relativamente às marcas que deixa nas pessoas. A minha geração é uma geração que cresceu com a ideia que Portugal ia ser um país desenvolvido, íamos ter um tecido empresarial dinâmico e flexível. Fomos para a universidade, tirámos cursos superiores. Enfim, era uma cartilha. Muitos de nós fomos os primeiros licenciados na família, parecia que tudo iria ser possível, que iríamos viver numa sociedade mais rica, mais segura e não foi assim. No meio jornalístico, por exemplo, sabemos que há revoadas de despedimentos e há muitos anos que isto acontece ciclicamente.
E tantas vezes com critérios mais que questionáveis.
Há sempre despedimentos surpreendentes, desde logo para a própria pessoa que é despedida, e que de repente fica sem chão. O caso piora quando há casais que trabalham no mesmo sítio e são despejados. E quando isso acontece sentimo-nos traídos porque não aconteceu nada do que era suposto e também porque o trabalho era a nossa própria vida. Por vezes, pergunto-me como consegui criar os meus filhos a trabalhar 12, 13 e 14 horas por dia. A nossa geração sacrificou muito a sua vida familiar. Depois, quando nos tiram o trabalho, o que somos nós? Ser despedido é um fracasso, é uma humilhação. Esta é a questão central do livro, em termos existencialistas, e que eu gostaria que ficasse a ecoar. A grande ironia do livro está no método japonês, que não existe. Como se não bastasse às personagens estarem a passar por todo aquele doloroso processo, elas é que são responsáveis, a empresa lava as mãos.
É um romance que nos atira para a selva?
E aí entra o mundo animal. Numa situação de grande perda, de catástrofe, as personagens fazem o que for preciso, estão desesperadas e, aí sim, entra a selva.
O livro parece apresentar-se como um “romance coral”, como se existisse um programa prévio a prever que nenhuma personagem ouse levantar a cabeça. Esta forma “coral” lançou-lhe particulares desafios? Foi-lhe difícil manter a batuta firme?
Foi talvez o mais difícil porque são muitas personagens, mas pareceu-me necessário para reproduzir o ambiente das redações, que são locais com muita diversidade e riqueza, em termos de amostra humana. Nas empresas, sobretudo as muito competitivas, o ambiente é tenso, propício ao uso de máscaras. Somos pessoas sempre cheias de sombras, de defeitos, mas, supostamente, no sítio onde trabalhamos disfarçamos. Não por acaso, somos pessoas muito mais irascíveis em casa porque temos a segurança de saber que estão lá pessoas que nos vão perdoar porque gostam de nós. Nos ambientes de trabalho, não, somos uma personagem, tantas vezes a viver um conflito no qual é difícil manter um papel.
Todas elas revelam ter um autoconhecimento elevado. E onde fica o pudor?
As personagens falam consigo próprias e não têm nenhum pudor em revelar as suas fraquezas, as suas misérias. Estão mergulhadas num ambiente tão tenso, estão tão fragilizadas que, quando estão em frente ao espelho, não têm pejo em ir ao osso e porem-se em carne viva.
E no entanto o humor tem neste livro um papel a jogar…
A dor e o riso, estando em polos opostos, são gémeos. Tenho a certeza de que o humor me tem salvado muito na vida. Há situações muitos complexas, do foro pessoal, profissional, que podem ser amenizadas com a capacidade de rir.
E em termos de escrita, o que a ocupa agora? Outro romance?
Sim, a ficção é um exercício que me seduz muito porque a realidade, cada vez mais dura e complexa, ultrapassa sempre a ficção. Ando muito a pé (vou para o trabalho a pé e regresso a pé) e não há nada melhor do que observar. E a ficção é aquele território em que podemos observar e depois construir sobre a observação, sem amarras, sem fidelidades a nada. E essa liberdade é exponencial na ficção narrativa e designadamente no romance.
Curiosamente, o tempo presente parece ter tudo para ser um território conveniente a um género como o conto, formato que à partida se lhe ajustaria: temos cada vez menos tempo, menor capacidade de manter atenção e foco…
Vejo-me a escrever conto, é um género que eu aprecio. Mas o conto é um género mal-amado, qualquer editor lhe dirá isto mesmo, o que tem a ver com a questão de sermos um mercado pouco desenvolvido em termos de leitura. A nossa relação com o livro ainda é muito marcada por estereótipos, pela noção do livro visto como objeto, que para corresponder a um determinado preço tem de obedecer a certas características, como o volume (por isso é que o livro de bolso entre nós não funciona). Todos sabemos que é dificílimo dominar a arte do conto, mas a impressão geral é a de que não é bem uma história. Precisamos de dar um salto enquanto mercado de leitura, para conseguir mais heterogeneidade. Ficámos reféns de duas ou três fórmulas que provaram que funcionam.