Sabra. A super heroína que está a causar um conflito israelo-palestiniano

Sabra. A super heroína que está a causar um conflito israelo-palestiniano


Mais de 40 anos depois, a Marvel promete “ressuscitar” Sabra, a agente de espionagem da Mossad, em Capitão América: Nova Ordem Mundial, que será lançado em 2024. Esta será a estreia de uma super-heroína israelita na gigante cinematográfica. Mas, quando julgávamos que isso seria sinónimo de representatividade, explode um conflito israelo-palestino nas redes sociais.


Se há uns anos atrás procurássemos por representatividade nas personagens de ficção, provavelmente, ficaríamos desiludidos. Durante muito tempo, foi bastante difícil que uma pessoa, considerada parte de uma minoria, se identificasse com as personalidades criadas pelas grandes empresas de entretenimento.

Contudo, com o passar do tempo e com a ascensão dos debates públicos sobre temas como o racismo, o feminismo, a xenofobia ou direitos LGBTQIA+, esse universo tem quebrado padrões e feito mudanças para tornar as suas histórias inclusivas, não querendo deixar ninguém de “fora”. As principais criadoras de super-heróis dos EUA (Marvel Comics e DC Comics) não são exceção. Nos últimos anos, estas têm tentado acompanhar os ideais igualitários e incorporar personagens diversificadas nas suas criações. 

Depois de em junho, a plataforma Disney+ ter revelado a Mulher Maravilha, uma série com a primeira super-heroína muçulmana; no início do mês, o Marvel Studios, parte integrante da The Walt Disney Company, anunciou na D23 Expo 2022 – uma convenção dedicada ao universo Disney – que o próximo filme do Capitão América, que tem lançamento previsto para 2024, intitulado Capitão América: Nova Ordem Mundial, terá a estreia de uma super-heroína israelita, Sabra, interpretada pela também atriz israelita Shira Haas, indicada ao Emmy pela série da Netflix, Unorthodox. 

Sabra apareceu pela primeira vez nas páginas da Marvel Comics em 1980, nos quadrinhos do Incrível Hulk, vestida com um macacão branco e uma capa azul presa por uma Estrela de David (símbolo em forma de estrela formada por dois triângulos sobrepostos iguais, utilizado pelo judaísmo). A personagem é descrita como a primeira “super-heroína” a servir ao Mossad – agência de espionagem israelita, conhecida por violações, assassinatos e tortura.

De acordo com a rede The Direct, os seus poderes abrangem a força, resiliência, agilidade e um fator de cura. A super-heroína cresceu num kibutz (forma de coletividade comunitária israelita) administrado pelo governo em questão, com intuito de “nutrir” as suas capacidades mutantes. Nos desenhos, Sabra costuma ser descrita como “a super-heroína do Estado de Israel”.

Representatividade vs Conflito Contudo, ao contrário daquilo que se poderia pensar, o anúncio da gigante cinematográfica atraiu uma onda de críticas negativas. Enquanto os judeus israelitas mostraram entusiasmo e orgulho com a escolha de uma atriz de Israel como super-heroína numa grande produção de Hollywood – “Orgulho de Israel”, declarou o site de notícias hebraico Maariv –, a reação entre os palestinianos e os seus apoiantes não foi tão positiva, tendo sido criada rapidamente uma hashtag para demonstrar o desagrado: #CaptainApartheid.

Porquê? Numa edição de 1981 do Hulk, Sabra mostrou pouca emoção pela morte de um menino palestinianos numa explosão, “até que o Hulk a esclareceu sobre os valores humanos básicos”, explica o The New York Times. De acordo com o jornal americano, a página da banda desenhada Marvel, mostra o gigante verde a chorar enquanto grita com Sabra.

Com o cadáver de um jovem rapaz palestiniano – morto numa explosão por “terroristas” aparentemente árabes –, aos seus pés, Hulk exclama: “O rapaz morreu porque o seu povo e o teu querem ambos possuir a terra! O rapaz morreu porque tu não queres partilhar!”. Algumas páginas à frente, Sabra ajoelha-se ao lado do rapaz. “Foi preciso o Hulk para fazê-la ver este rapaz árabe morto como um ser humano”, lê-se na banda desenhada. “Foi preciso um monstro para despertar o seu próprio sentido de humanidade”, acrescenta. 

Por isso, muitos críticos acabaram por ligar a novidade ao massacre israelita contra palestinianos em Sabra e Shatila, em 1982, expressando indignação com o personagem e a sua identidade como agente israelita e acusando a Marvel de “comprar propaganda sionista, de ignorar ou apoiar a ocupação israelita do território capturado em 1967 e de desumanizar os palestinianos”. 

Segundo o Le Figaro, no dia 16 de setembro de 1982, após a invasão israelita no Líbano, forças paramilitares do grupo de extrema-direita Falange Cristã (milicianos cristãos libaneses aliados a Israel) investiram contra os campos de refugiados de Sabra e Shatila, a oeste de Beirute, e mataram centenas de palestinianos, na vasta maioria civis – algumas análises apontam milhares de vítimas. Os libaneses comemoram precisamente neste ano o 40º aniversário do terrível episódio.

“Acredita-se que o exército israelita efetivamente auxiliou a chacina, ao cercar ambas as áreas e fornecer tratores aos falangistas para que enterrassem os corpos dos palestinianos em covas coletivas”, explica o jornal francês. Por isso, de acordo com o The New York Times, se por um lado Sabra pode designar para judeus israelitas apenas uma pessoa nascida em Israel, é para palestinianos ligado ao “arbusto sabra”, tradicionalmente usado para marcar os limites das terras das aldeias, sendo um símbolo de perda e firmeza (“sabr” também é a palavra árabe para “paciência”).

“Durante a guerra que acompanhou a criação de Israel em 1948, as forças sionistas e israelitas destruíram centenas de aldeias palestinas e centenas de milhares de palestinianos tornaram-se refugiados depois de fugirem ou serem expulsos das suas casas”, explica o jornal americano, acrescentando que “os resistentes arbustos de sabra permaneceram uma parte indelével da paisagem, mesmo depois da maioria dos vestígios das aldeias ter desaparecido”.

Um ataque aos palestinianos? Nas redes sociais cresceram mensagens de indignação. “Ao glorificar o exército e a polícia israelita, a Marvel está a promover a violência de Israel contra os palestinianos, permitindo a opressão contínua de milhões de palestinianos que vivem sob o regime militar autoritário de Israel”, escreveu no Twitter o Institute for Middle East Understanding, uma organização pró-palestina sediada nos EUA.

“Um golpe baixo da Marvel intitulá-la de ‘super-heróina’, após o massacre israelita de palestinianoss de Sabra e Shatila. Apologistas de crimes de guerra israelitas e genocídio!”, acusa um internauta. “É assim que os árabes são apresentados na primeira aparição de Sabra nos quadrinhos da Marvel. A palavra palestinianos nunca é usada. Uma criança árabe nos quadrinhos é morta a tiro por homens-bomba com véus negros para que Sabra possa chorar por eles. Literalmente atirar e chorar propaganda!”, responde outro. “A super-heroína da Marvel de Israel, Sabra, tem muitos poderes, incluindo demolir casas palestinas com a sua mente e assassinar crianças palestinas com seus olhos de raio laser”, lê-se ainda. 

Yumna Patel, diretora de notícias da rede Mondoweiss para a Palestina observou: “Dizer que um super-herói israelita é chamado Sabra é problemático e ofensivo a todos os palestinianos mortos e marginalizados pelo colonialismo israelita é o eufemismo do século”. “O próprio personagem serviu ao Mossad, agência que executou, encarcerou e arruinou as vidas de inúmeros palestinianos”, acrescentou Patel.

“Tendo em conta tudo isto é difícil não concluir que as pessoas da Marvel ou são abjetamente ignorantes sobre a região, a sua história e a experiência palestina, ou tinham deliberadamente como objetivo pontapear um povo que vivia sob o apartheid enquanto estavam em baixo”, lamentou à CNN, Yousef Munayyer, escritor e analista palestiniano-americano baseado em Washington, nos EUA. 

Tal como será a primeira vez que a Marvel “recria” um super herói israelita, também será a primeira vez que a Mossad recebe “um estatuto sobrenatural ao nível de um mega super-herói de sucesso de bilheteira”. E, segundo a CNN, “os peritos dizem que é uma vitória para a agência em matéria de relações públicas”.

Ao canal, Avner Avraham, um antigo oficial da Mossad e fundador da Spy Legends Agency – que é consultada para filmes e programas de televisão que retratam espiões israelitas –, disse que o novo retrato “ajudará uma geração mais jovem a aprender sobre a Mossad”: “Esta é a forma ‘TikTok’, a forma caricatural de falar com a nova geração, e eles aprenderão a origem da palavra Mossad. Ajuda a criar marca. Irá trazer um público diferente!”, acredita Avraham. Segundo o mesmo, tal exposição pode mesmo ajudar a Mossad a recrutar fontes e assistência noutros países.

Além disso, segundo a mesma agência, os críticos dizem que muitas das personagens árabes com quem a super heroína interagiu na banda desenhada são apresentados como “misóginos, antissemitas e violentos”, e questionam se os retratos inquietantes dos árabes se desenrolarão de forma diferente no filme. “Essa banda desenhada não sugere nada de positivo sobre a forma como este filme se irá desenrolar”, afirmou Munayyer. “A glorificação da violência contra palestinianos especificamente, e árabes e muçulmanos mais amplamente, nos média tem uma história longa e feia no Ocidente e tem um poder de permanência notável”, acrescentou.

Uma história outra abordagem Diante das críticas, a Marvel defendeu-se num comunicado nas redes sociais prometendo uma “nova abordagem” do personagem para o filme, cujo roteiro ainda não foi finalizado. “Embora os nossos personagens e histórias sejam inspirados nos quadrinhos são sempre atualizados e reimaginados para o cinema e o público atual. Os diretores terão uma nova abordagem com o personagem de Sabra”, disse o estúdio. Segundo a nota, a Marvel também convoca regularmente consultores culturais para “garantir que o estúdio não reforce estereótipos nocivos”.

E, ao que parece, há aqueles que compreendem a sua decisão. Yossi Klein Halevi, autor israelita americano e membro sénior do Shalom Hartman Institute – um centro educacional e de pesquisa com sede em Jerusalém – disse ao jornal americano que acredita que os cineastas não pretendiam fazer referência ao campo de refugiados quando decidiram usar o personagem.

“Às vezes, um filme da Marvel é apenas um filme da Marvel”, acrescentou. Já Joseph Cedar, um diretor israelita nascido em Nova Iorque, responsável por filmes como Notas de Rodapé, de 2011 e Norman: Confia em mim, de 2016, elogiou a escolha da atriz de 27 anos. “Gosto da ideia de que a personificação de um super-herói israelita não seja uma supermodelo alta, mas sim uma atriz brilhante que se identifica através das suas belas falhas humanas e não perfeições desumanas”, disse Cedar.

Einat Wilf, ex-legisladora israelita e autora de Deveríamos todos ser Sionistas, publicado este ano, esclareceu que Israel está a “desfrutar de um certo momento cultural”, com muitas das suas produções televisivas locais a encontrar sucesso em plataformas internacionais de streaming. “A Marvel quer ganhar dinheiro”, observou, acrescentando que parece que o estúdio “viu o apelo de bilheteira de um super-herói israelita”.

Contudo, a escritora prefere guardar o seu “julgamento” sobre Sabra para depois do seu lançamento, já que “os super-heróis se tornaram personagens mais complexos nos últimos anos, com um lado bom, um lado mau e uma história de trauma”. “Mas não tenho certeza de que um super-herói israelita signifique um retrato positivo de Israel”, apontou. 

Por outro lado, à CNN, Waleed F. Mahdi, autor de Americanos Árabes no Cinema: dos Estereótipos de Hollywood e do Egipto à Auto-Representação, afirma que a “aliança EUA-Israel” na narrativa cinematográfica desde os anos 60 tem celebrado as agências de segurança e de inteligência americanas e israelitas como sendo forças boas “empenhadas em dissuadir a violência que tem estado principalmente ligada a árabes e muçulmanos”.

“O anúncio da Marvel de adaptar o caráter cómico de Sabra é um reflexo deste legado”, frisou. Outros acreditam que Sabra pode não ser uma super-heroína para os nossos tempos. Tal como é o caso de Etgar Keret, um autor, argumentista e romancista gráfico israelita, que defende que a personagem original Sabra foi criada numa época diferente com uma “história simples e clara”.

“Esta Sabra foi criada antes de duas Intifadas [palestinianas], foi criada antes do fracasso dos Acordos de Oslo – foi criada numa realidade e estado de espírito totalmente diferente. E agora… é difícil manter este tipo de ícone de simplicidade”, argumentou. 

Além de Hulk, Sabra fez outras aparições nas bandas desenhadas da Marvel ao lado do Homem de Ferro e X-Men. Resta esperar para perceber como será o seu regresso, 40 anos depois de ter sido criada. A Disney definiu a data de lançamento do filme para 3 de maio de 2024.