Até que a voz lhes doa


No tempo em que os telefones serviam para falar com seres humanos a voz tinha a sua importância.


Uma voz insinuante, grave e bem timbrada chegava mais depressa ao coração do que à trompa de Eustáquio, despertava a imaginação, prometendo dar àquela voz um corpo que a merecesse. Muito boa literatura foi então produzida com base no encantamento da voz à distância, alimentando reciprocamente o medo nos interlocutores: será que tenho argumentos tridimensionais que acompanhem a voz ouvida?

A voz da rádio foi quase sempre uma agradável companhia e foram longos os tempos em que o currículo do Conservatório Nacional incluía o treino e aperfeiçoamento da voz. Muitas foram as vozes da rádio que transitaram para a televisão, assegurando a qualidade da dicção e da consequente comunicação. A multiplicação dos canais televisivos, com a necessidade de ocupar horas infinitas de emissão, a proletarização da profissão jornalística e a moranguização dos actores, deveria ter feito emudecer as emissões televisivas. Mas não, aquilo que seriam defeitos de dicção, erros graves no uso da voz, incapacidade de leitura em voz alta do teleponto ou do linguado vindo da redacção, foram elevados a modalidades olímpicas na agressão aos ouvidos dos telespectadores.

Desenvolveram-se escolas na arte de ferir o tímpano alheio, fazendo mirrar as meninges. Destaca-se a técnica do relato desportivo que vale para o assalto à bomba de gasolina durante a semana e regressa ao futebol ao fim-de-semana: as palavras aceleram, as frases gritadas enrolam-se umas nas outras, aguardando o remate da reportagem, quase sempre ao lado.

Mais recente, e supostamente “importada” de um canal internacional, surgiu a dicção corrida, sem respiração, fazendo elisões entre palavras e colando frases, numa falsa urgência estrídula a tentar dar importância gritada à inauguração de um bebedouro para pássaros por parte do Ministro dos bebedouros para pássaros.

A voz, mesmo quando incapaz de comunicar informação, diz muito sobre quem a usa. O canal televisivo, cujo nome não quero referir, desenvolveu uma escola rural-seminarista em que a voz que narra o despiste (do-autocarro-que-veio-embater-no-muro-da-garagem-de-um-cidadão-sem-ter-feito-vítimas-por-entre-os-habitantes-que-não-se-encontravam- no-interior-por-ter-acontecido-cerca-da-meia-noite-a-GNR-já-tomou-conta-da-ocorrência-tendo-se-deslocado-para-o-local-11-operacionais) tem entoações nasais a meio da frase, quebrada como são os versículos bíblicos nas más leituras do pároco local, imune à pontuação. Aguardo com expectativa um imperativo “Oremos irmãos!” a seguir ao tradicional “desapareceu de casa de seus pais, há cerca de três dias, trajava gabardine verde escura e meias vermelhas, aparenta cerca de 60 anos”.

O Governo (Who else?) que em boa hora decretou 3 dias de luto nacional “como justa homenagem a sua Majestade a Rainha Isabel II” (remete-se aqui para a profundidade histórico-literária da fórmula preambular do Decreto nº 4-A/2022, de 16 de Setembro) deveria ter criado condições para que os portugueses pudessem ter seguido condigna e informadamente as cerimónias fúnebres. Não fomos bafejados pela sorte de enviar para Londres algumas das dezenas de jornalistas que denodamente relatam, com vozes coloridas, o que diariamente se passa no país real português. Desta vez já não vamos a tempo mas na próxima ocasião sugiro que seja destacado um robusto complemento de alegres comunicadores sociais integrando pelo menos 10 membros do Quarto Poder da escola relato-futebolística e outros tantos da escola rural-seminarista. 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990
 

Até que a voz lhes doa


No tempo em que os telefones serviam para falar com seres humanos a voz tinha a sua importância.


Uma voz insinuante, grave e bem timbrada chegava mais depressa ao coração do que à trompa de Eustáquio, despertava a imaginação, prometendo dar àquela voz um corpo que a merecesse. Muito boa literatura foi então produzida com base no encantamento da voz à distância, alimentando reciprocamente o medo nos interlocutores: será que tenho argumentos tridimensionais que acompanhem a voz ouvida?

A voz da rádio foi quase sempre uma agradável companhia e foram longos os tempos em que o currículo do Conservatório Nacional incluía o treino e aperfeiçoamento da voz. Muitas foram as vozes da rádio que transitaram para a televisão, assegurando a qualidade da dicção e da consequente comunicação. A multiplicação dos canais televisivos, com a necessidade de ocupar horas infinitas de emissão, a proletarização da profissão jornalística e a moranguização dos actores, deveria ter feito emudecer as emissões televisivas. Mas não, aquilo que seriam defeitos de dicção, erros graves no uso da voz, incapacidade de leitura em voz alta do teleponto ou do linguado vindo da redacção, foram elevados a modalidades olímpicas na agressão aos ouvidos dos telespectadores.

Desenvolveram-se escolas na arte de ferir o tímpano alheio, fazendo mirrar as meninges. Destaca-se a técnica do relato desportivo que vale para o assalto à bomba de gasolina durante a semana e regressa ao futebol ao fim-de-semana: as palavras aceleram, as frases gritadas enrolam-se umas nas outras, aguardando o remate da reportagem, quase sempre ao lado.

Mais recente, e supostamente “importada” de um canal internacional, surgiu a dicção corrida, sem respiração, fazendo elisões entre palavras e colando frases, numa falsa urgência estrídula a tentar dar importância gritada à inauguração de um bebedouro para pássaros por parte do Ministro dos bebedouros para pássaros.

A voz, mesmo quando incapaz de comunicar informação, diz muito sobre quem a usa. O canal televisivo, cujo nome não quero referir, desenvolveu uma escola rural-seminarista em que a voz que narra o despiste (do-autocarro-que-veio-embater-no-muro-da-garagem-de-um-cidadão-sem-ter-feito-vítimas-por-entre-os-habitantes-que-não-se-encontravam- no-interior-por-ter-acontecido-cerca-da-meia-noite-a-GNR-já-tomou-conta-da-ocorrência-tendo-se-deslocado-para-o-local-11-operacionais) tem entoações nasais a meio da frase, quebrada como são os versículos bíblicos nas más leituras do pároco local, imune à pontuação. Aguardo com expectativa um imperativo “Oremos irmãos!” a seguir ao tradicional “desapareceu de casa de seus pais, há cerca de três dias, trajava gabardine verde escura e meias vermelhas, aparenta cerca de 60 anos”.

O Governo (Who else?) que em boa hora decretou 3 dias de luto nacional “como justa homenagem a sua Majestade a Rainha Isabel II” (remete-se aqui para a profundidade histórico-literária da fórmula preambular do Decreto nº 4-A/2022, de 16 de Setembro) deveria ter criado condições para que os portugueses pudessem ter seguido condigna e informadamente as cerimónias fúnebres. Não fomos bafejados pela sorte de enviar para Londres algumas das dezenas de jornalistas que denodamente relatam, com vozes coloridas, o que diariamente se passa no país real português. Desta vez já não vamos a tempo mas na próxima ocasião sugiro que seja destacado um robusto complemento de alegres comunicadores sociais integrando pelo menos 10 membros do Quarto Poder da escola relato-futebolística e outros tantos da escola rural-seminarista. 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990